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Paulo Coelho de Souza

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The narrator tells a story about his domestic life with a black cat named Pluto. He starts off by describing his love for animals and how he and his wife owned many different pets. However, the narrator's character begins to change due to his alcoholism, leading him to mistreat his pets, except for Pluto. One night, in a fit of rage, he gouges out one of Pluto's eyes. Afterward, he feels remorse and hangs the cat from a tree, leading to the destruction of his house by fire. In the ruins, he discovers a grotesque image of a cat on the remaining wall. The narrator is haunted by guilt and seeks to replace Pluto. Overall, the story explores themes of guilt, alcoholism, and the consequences of one's actions. O Gato Preto Edgar Allan Poe Não espero nem peço que se dê crédito à história sumamente extraordinária e, no entanto, bastante doméstica que eu vou narrar. Louco seria eu se esperasse tal coisa, tratando-se de um caso que os meus próprios sentidos se negam a aceitar. Não o bastante, não estou louco e com toda certeza não sonho, mas amanhã morro e, por isso, gostaria hoje de aliviar o meu espírito. Meu propósito imediato é apresentar ao mundo clara e sucintamente, mas sem comentários, uma série de simples acontecimentos domésticos. Devido às suas consequências, tais acontecimentos me aterrorizaram, torturaram e destruíram. No entanto, não tentei esclarecê-los. Em mim, quase não produziam outra coisa senão horror. Mas, em muitas pessoas, talvez lhes pareçam menos terríveis do que grotesco. Talvez, mais tarde, haja alguma inteligência que reduza o meu fantasma a algo comum. Uma inteligência mais serena, mais lógica e muito menos excitável do que a minha. Que perceba, nas circunstâncias a que me refiro com o terror, nada mais do que uma sucessão comum de causas e efeitos muito naturais. Desde a infância, tornaram-se patentes a docilidade e o sentido humano de meu caráter. A ternura do meu coração era tão evidente que me tomava algo dos gracejos de meus companheiros. Gostava especialmente de animais, e meus pais me permitiam possuir grande variedade deles. Passava com eles quase todo o meu tempo, e jamais me sentia tão feliz quando lhes dava de comer ou os acariciava. Com os anos, aumentou esta peculiaridade de meu caráter, e quando me tornei adulto, fiz dela uma das minhas principais fontes de prazer. Aos que já sentiram afeto por um cão fiel e sagaz, não preciso me dar o trabalho de explicar a natureza ou a intensidade da satisfação que se pode ter com isso. Há algo no amor desinteressado e capaz de sacrifícios de um animal, que toca diretamente no coração daqueles que tiveram ocasiões frequentes de comprovar a amizade mesquinha e frágil e fidelidade de um simples homem. Casei cedo, e tive a sorte de encontrar em minha mulher disposição semelhante a minha. Notando meu amor pelos animais domésticos, não perdi a oportunidade de arranjar as espécies mais agradáveis de todos os bichos. Tínhamos pássaros, peixes, dourados, um cão, coelhos, um macaquinho e um gato. Este último era um animal extraordinariamente grande e belo, todo negro, de espantosa sagacidade. Ao referir-se a sua inteligência, minha mulher, que no íntimo do seu coração era um tanto supersticiosa, fazia frequentes alusões à antiga crença popular de que todos os gatos pretos são feiticeiras disfarçadas. Não que ela se referisse seriamente a isso. Menciono o fato apenas porque aconteceu de lembrar-me disto neste momento. Pluto, assim se chamava o gato, era meu preferido, com o qual eu mais me distraía. Eu só o alimentava, e ele me seguia sempre pela casa. Tinha dificuldade mesmo em impedir que me acompanhasse pela rua. Nossa amizade durou, desse modo, vários anos, durante os quais não só o meu caráter, como o meu temperamento, em rubeiço ao confessá-lo, sofreram. Devido ao demônio da intemperância, uma modificação radical para a pior, tomava-me, dia a dia, mais tossiturno, mais irritadiço, mais indiferente aos sentimentos dos outros. Sofri ao empregar linguagem desabrida ao dirigir-me à minha mulher. No fim, cheguei mesmo a tratá-la com violência. Meus animais certamente sentiam a mudança operada em meu caráter. Não apenas não lhes dava alguma atenção, como ainda os maltratava. Quanto a Pluto, porém, ainda despertava em mim consideração suficiente que me impedia de maltratá-lo. Ao passo disso, senti escrúpulo algum em maltratar coelhos, o macaco e mesmo o cão, quando, por acaso ou afeto, cruzavam em meu caminho. Meu mal, porém, ia tomando conta de mim. Que outro mal pode se comparar ao álcool? E, no fim, até Pluto, que começava agora a envelhecer, por seguinte, se tomara um tanto rabugento. Até mesmo Pluto começou a sentir os efeitos de meu mau humor. Certa noite, ao voltar à casa, muito embriagado de uma de minhas andanças pela noite, tive a impressão de que o gato evitava minha presença. Apanhei-o, e ele, assustado ante a minha violência, me feriu a mão. Levemente, com os dedos, uma fúria demoníaca apoderou-se instantaneamente de mim. Já não sabia mais o que eu estava fazendo. Dir-se-ia que, súbito, minha alma abandonara o corpo, e uma perversidade mais do que diabólica, causada pelo gênebra, fez vibrar todas as fibras de meu ser. Tirei do meu bolso um canivete. Abri-o, agarrei o pobre animal pela garganta, e, friamente, arranquei de sua órbita um dos olhos. Enrobeço, estremeço, abrazo-me de vergonha, ao referir-me aqui esta abominável atrocidade. Quando a chegada da manhã, voltei à razão, dissipados já os vapores de minha orgia noturna. Experimentei pelo crime que praticara um sentimento que era um misto de horror e remorso. Não passou de um sentimento superficial e equívoco, pois minha alma permaneceu impassível. Mergulhei novamente em excessos, afogando logo no vinho e a lembrança de que acontecera. Entre mentes, o gato se restabeleceu lentamente. A órbita do olho perdido se apresentava, é certo, um aspecto horrível, mas não parecia mais sofrer de dor. Passeava pela casa como de costume, mas, como bem se podia esperar, fugia, tomado de extremo horror, a minha aproximação. Restava-me ainda o bastante de meu antigo coração, para que, a princípio, sofresse com aquela evidente aversão por parte de um animal, que antes me amara tanto. Mas esse sentimento logo se transformou em irritação. Então, como para perder-me final e irrecivelmente, surgiu o espírito da perversidade? Desse espírito, a filosofia não toma conhecimento, não o bastante tão certo, como existe minha alma. Creio que a perversidade é um dos impulsos primitivos do coração humano, uma das faculdades ou sentimentos primários que dirigem o caráter do homem. Quem não se viu centenas de vezes a cometer ações viz ou estúpidas, pela única razão de que não devia cometê-las, acaso não sentimos uma inclinação constante, mesmo quando estamos no melhor do nosso juízo, para violar aquilo que é lei. Simplesmente porque a compreendemos como tal. Esse espírito de perversidade, digo eu, foi a causa de minha queda final. O vivo e insondável desejo da alma de atormentar-se a si mesma, de violentar sua própria natureza, de fazer o mal pelo próprio mal. Foi o que me levou a continuar, e afinal, a levar a cabo o suplício que infligira ao inofensivo animal. Uma manhã, a sangue frio, meti-lhe um nó corredil em torno do pescoço, em um forqueio no galho de uma árvore. Filo com os olhos cheios de lágrimas, com o coração transbordante do mais amargo remorso. Enforquei-o, porque sabia que ele me amara, e porque reconhecia que não me dera motivo algum para que me voltasse contra ele. Enforquei-o, porque sabia que estava cometendo um pecado, um pecado mortal, que comprometia a minha alma imortal, afastando-a do se é que isso era possível, na misericórdia infinita de um Deus infinitamente misericordioso e infinitivamente terrível. Na noite do dia em que fui cometido esta ação tão cruel, fui despertado pelo grito de fogo. As cortinas de minha cama estavam em chamas. Toda a casa ardia. Fui com grande dificuldade que minha mulher, uma criada e eu, conseguimos escapar do incêndio. A destruição foi completa. Todos os meus bens terrenos foram tragados pelo fogo, e desde então me entreguei ao desespero. Não pretendo estabelecer relação alguma entre causa e efeito, entre o desastre e a atrocidade por mim cometida, mas estou descrevendo uma sequência de fatos, e não desejo omitir nenhum dos elos desta cadeia de acontecimentos. No dia seguinte ao incêndio, visitei as ruínas. As paredes, com exceção de uma apenas, tinham desmoronado. Essa única exceção era constituída por um fino tambique interior, situado no meio da casa, junto ao que se achava a cabeceira de minha cama. O reboco havia, aí, em grande parte, resistido à ação do fogo, coisa que eu atribuí ao fato de ele ter sido construído recentemente. Densa multidão se reunira em torno desta parede, e muitas pessoas examinavam com particular atenção e minuciosidade. Uma parte dela, as palavras estranho e singular, bem como outras expressões semelhantes, despertaram-me à curiosidade. Aproximei-me, e vi como se gravada em baixo relevo sobre a superfície branca, a figura de um gato gigantesco. A imagem era de uma exatidão verdadeiramente maravilhosa. Havia uma corda em torno do pescoço do animal. Logo que vi tal aparição, pois não poderia considerar aquilo como outra coisa, o assombro e terror que se me apoderaram foram extremos. Mas, finalmente, a reflexão veio em meu auxílio. O gato, lembrei-me, foram enforcado num jardim existente junto à casa, aos gritos de alarme. O jardim fora imediatamente invadido pela multidão. Alguém deve ter retirado o animal da árvore, lançando-o através de uma janela aberta para dentro do meu quarto. Isso foi feito, provavelmente com a intenção de despertar-me. A queda das outras paredes havia comprimido a vítima de minha crueldade no gesso recente colocado sobre a parede, que permanecera de pé. O caldo-muro com as chamas e o amoníaco foram desprendidos da carcaça. Produziram a imagem tal qual eu agora via. Embora isso satisfizesse prontamente a minha razão, não conseguia fazer o mesmo, de maneira completa, com a minha consciência. Pois, o surpreendente fato que acabo de descrever não deixou de causar-me, apesar de tudo, profunda impressão. Durante meses, não pude livrar-me do fantasma do gato. E, nesse espaço de tempo, nasceu no meu espírito uma espécie de sentimento que parecia remorso, embora não o fosse. Cheguei mesmo a lamentar a perda do animal e a procurar no sorde dos lugares que então frequentava outro bichano da mesma espécie e de aparência semelhante que pudesse substituí-lo. Uma noite em que me achava sentado, meio aturtido, num ântro mais que infame, tive a atenção despertada subitamente por um objeto que jazia no alto de um dos enormes barris de gênebra ou rum, que constituíam quase que o único mobiliário do recinto. Fazia já alguns minutos que olhava fixamente o alto do barril, e o que então me surpreendeu foi não ter visto antes o que fazia sobre o mesmo. Aproximei-me e toquei-o com a mão. Era um gato preto, enorme, tão grande quanto Pluto, e que, sobre todos os aspectos, salvo um, se assemelhava a ele. Pluto não tinha um único pelo branco em todo o corpo, e o bichano que a lhe possuía uma mancha larga e branca, embora de forma indefinida, a cobri-lhe quase toda a região do peito. Ao acariciar-lhe o dorso, erguiu-se imediatamente, ronronando com força e esfregando-se em minha mão, como se a minha atenção lhe causasse prazer. Era, pois, o animal que eu procurava. Apreciei-me em propor ao dono a sua aquisição. Mas este não manifestou interesse algum pelo felino. Não o conhecia, jamais o vira antes. Continuei a acariciá-lo, e, quando me dispunha voltar para casa, o animal demonstrou disposição de acompanhar-me. Permiti que o fizesse, detendo-me, de vez em quando, no caminho para acariciá-lo. Ao chegar, sentiu-se imediatamente à vontade, como se pertencesse à casa, tomando-se logo um dos bichanos preferidos de minha mulher. De minha parte, passei a sentir logo aversão por ele. Acontecia, pois, que justamente o contrário do que eu esperava. Mas a verdade é que, não sei como nem porquê, seu evidente amor por mim me desgostava e aborrecia. Lentamente, tais sentimentos de desgosto e fastio se converteram no mais amargo ódio. Evitava o animal. Uma sensação de vergonha, bem como a lembrança da crueldade que praticara. Impediam-me de maltratá-lo fisicamente. Durante algumas semanas, não lhe abati nem pratiquei nada contra ele. Qualquer violência. Mas, aos poucos, muito gradativamente, passei a sentir por ele inenarrável horror, fugindo em silêncio sepulcral de sua odiosa presença, como se fugisse de uma peste. Sem dúvida, o que aumentou meu horror pelo animal, foi a descoberta na manhã do dia seguinte ao que levei para casa que, como Pluto, também havia sido privado de um dos olhos. Tals circunstâncias também apenas contribuiu para que minha mulher sentisse por ele maior carinho. Pois, como já disse, era dotada, em alto grau, desta ternura de sentimentos que constituíra, em outros tempos, um de meus traços principais, bem como fonte de muitos de meus prazeres mais simples e puros. No entanto, a preferência que o animal demonstrava pela minha pessoa parecia aumentar em razão direta da aversão que sentia por ele. Seguia meus passos com uma pertinência que dificilmente poderia fazer com que o leitor compreendesse. Sempre que me sentava, enrodilhava-se embaixo de minha cadeira ou me saltava ao colo, cobrindo-se de suas odiosas carícias. Se levantava para andar, metia-se-me entre as pernas e quase me derrubava, ou então, cravando suas longas e afiadas garcas em minhas roupas. Subia por ela até o meu peito. Nessas ocasiões, embora tivesse impeto de matá-lo de um golpe, abstinha-me de fazê-lo devido, em parte, à lembrança de meu crime anterior, mas, sobretudo, apressa-me a confessá-lo pelo pavor extremo que o animal me despertava. Este pavor não era exatamente um pavor de mal físico e, contudo, não saberia defini-lo de outra maneira. Quase me envergonha confessar, sim, mesmo nesta cela de criminoso. Quase me envergonha confessar que o terror e o pânico que o animal me inspirava eram aumentados por uma das mais puras fantasias que se possa imaginar. Minha mulher, mais de uma vez, me chamara a atenção para o aspecto da mancha branca a que eu já me referi, e que constituía a única diferença visível entre aquele estranho animal e o outro. Eu me enforcara. O leitor, de certo, se lembrará que aquele sinal, embora grande, tinha, a princípio, uma forma bastante indefinida, mas, lentamente, de maneira quase imperceptível, que minha imaginação, durante muito tempo, lutou para rejeitar como fantasiosa. Adquirira, por fim, uma nitidez rigorosa de contornos. Era, agora, a imagem de um objeto cuja menção me faz tremer. E, sobretudo, por isso, eu o encarava como um monstro de horror e repugnância, do qual, se eu tivesse coragem, teria me livrado. E, agora, confesso a imagem de uma coisa odiosa, abominável. A imagem da forca. Ó, lúgebre e terrível, máquina de horror e de crime, de agonia e de morte. Na verdade, naquele momento, eu era um miserável. Um ser que, além da minha própria miséria da humanidade, era uma besta-fera, cujo irmão fora, por mim, desdinhosamente destruído. Uma besta-fera que se engendrara de mim. Um homem feito a imagem do Deus Altíssimo. Ó, grande e insuportável, infortúnio. Ai de mim! Nem de dia, nem de noite, conheceria jamais a benção do descanso. Durante o dia, o animal não me deixava só em um único momento. A noite. Despertava de hora em hora, tomando do indescritível terror de sentir o hálito quente da coisa sobre o meu rosto e seu enorme peso. Encarnação de um pesadelo que não podia se afastar de mim. Repousado eternamente sobre o meu coração. Sobre a pressão de tais tormentos, sucumbiu o pouco que restava em mim de bom. Pensamentos maus converteram-se em meus únicos companheiros, os mais sombrios e os mais perversos dos pensamentos. Minha rabugice habitual se transformou em ódio por todas as coisas e por toda a humanidade, enquanto eu, agora, me entregava cegamente a súbitos, frequentes e irreprimíveis acessos de cólera. Minha mulher, pobre dela, não se queixava nunca, convertendo-se na mais paciente e sofredora das vítimas. Um dia, acompanhou-me para ajudar-me numa das tarefas domésticas, até o porão de um velho edifício em que nossa pobreza me obrigava a morar. O gato seguiu-nos e, quase fazendo rolar escada abaixo, me asperou a ponto de perder o juízo, apanhando uma machadinha e esquecendo do terror poeiro que até então contivera minha mão. Dirigiu o animal um golpe imortal, que teria sido mortal se atingisse o alvo, mas minha mulher segurou meu braço, detendo o golpe, tomando, então, de fúria demoníaca. Livrei o braço do obstáculo que o detinha e cravei-lhe a mancha do cérebro. Minha mulher caiu morta instantaneamente, sem lançar nem um gemido. Realizando o terrível assassínio, procurei, devido por súbita resolução, esconder o corpo, que não poderia retirá-lo de casa nem de dia nem de noite, sem correr o risco de ser vistos pelos vizinhos. Ocorreram-me vários planos. Pensei por um instante em cortar o corpo em pequenos pedaços e destruí-los por meio do fogo. Resolvi depois cavar uma fossa no chão da adega. Em seguida, pensei em atirá-lo ao poço do quintal. Mudei de ideia e decidi metê-lo num caixote, como se fosse uma mercadoria na forma habitual, fazendo com que um carregador retirasse da minha casa. Finalmente tive uma ideia que pareceu muito mais prática. Resolvi emparedá-la na adega, como faziam os monges da Idade Média com as suas vítimas. Aquela adega se prestava muito bem para o tal propósito. As paredes não haviam sido construídas com muito cuidado, e pouco antes haviam sido cobertas em toda a extensão de um reboco que a umidade impedira de endurecer. Ademais, havia uma saliência numa das paredes, produzida por alguma chaminé ou lareira, que fora tapada para que se assemelhasse ao resto da adega. Não duvidei de que poderia facilmente retirar os tijolos naquele lugar, introduzir o corpo e recolocá-los do mesmo modo, sem que nenhum olhar pudesse descobrir nada que despertasse suspeita. E não me enganei em meus cálculos. Por meio de uma alavanca, desloquei facilmente os tijolos e, tendo depositado o corpo com cuidado de encontro à parede interior, segurei-o nesta posição, até poder recolocar sem grande esforço os tijolos em seu lugar, tal como estavam anteriormente. Arranjei cimento, cal e areia, com toda a precaução possível. Preparei uma argamassa que não se podia distinguir da anterior, cobrindo-a escrupulosamente a nova parede. Ao terminar, senti-me satisfeito, pois tudo correrá bem. A parede não apresentava o menor sinal de ter sido rebocada. Limpei o chão com o maior cuidado e, lançando o olhar em torno, disse, de mim para comigo. Pelo menos aqui o meu trabalho não foi em vão. O passo seguinte foi procurar o animal que havia sido a causa de tanta desgraça, pois resolvera finalmente matá-lo. Se naquele momento tivesse podido encontrá-lo, não haveria dúvida quanto à sua morte. Mas parece que o esperto animal se alarmara ante a violência de minha cólera, e procurava não aparecer diante de mim enquanto me encontrasse naquele estado de espírito. Impossível descrever ou imaginar o profundo abençoado alívio que me causava a ausência de tão detestável felino. Não apareceu também durante a noite, e assim, pela primeira vez desde sua entrada na casa, consegui dormir tranquila e profundamente. Sim, dormi mesmo com aquele peso assassíneo sobre a minha alma. Transcorreram o segundo e o terceiro dia, e o meu algoz não apareceu. Pude respirar novamente, como um homem livre. O monstro aterrorizado fugira para sempre de casa. Não tomaria vê-lo. Minha felicidade era infinita. A culpa de minha tenebrosa ação pouco me inquietava. Foram feitas algumas investigações, mas respondi prontamente a todas as perguntas. Procedeu-se também a uma vistoria de minha casa, mas naturalmente nada podia ser descoberto. Eu considerava já como uma coisa certa a minha felicidade futura. No quarto dia após o assassinato, uma caravana policial chegou inesperadamente à casa, e realizou de novo uma rigorosa investigação, seguro, no entanto, de que ninguém descobriria jamais o lugar em que eu ocultava o cadáver. Não experimentei a menor perturbação. Os policiais pediam-me que os acompanhassem em sua busca, mas não deixaram de esquadrinar um canto sequer da casa. Por fim, pela terceira ou quarta vez, desciam novamente ao porão. Não se alterei o mínimo que fosse. Meu coração batia calmamente, como um dia um inocente. Andei por todo o porão, de ponta a ponta, com os braços cruzados sobre o peito. Caminhava calmamente de um lado para o outro. A polícia estava inteiramente satisfeita e preparava-se para sair. O júbilo que me inundava o coração era forte demais para que pudesse contê-lo. Ardia de desejo de dizer uma palavra, a única palavra, à guisa de triunfo, e também para tomar duplamente evidente a minha inocência. Senhores, disse por fim, quando os policiais já subiam a escada. É para mim motivo de grande satisfação haver desfeito de qualquer suspeita. Desejo a todos os senhores uma ótima saúde e um pouco mais de cortesia. Diga-se de passagem, senhores, que esta é uma casa muito bem construída. Quase não sabia o que dizia e me desejo de falar com naturalidade. Podia mesmo dizer que é uma casa excelentemente construída. Estas paredes, os senhores já se vão? E estas paredes são de grande solidez. Nesta altura, movido por pura e frenética fanfarronada, bati com força com a bengala que tinha na mão, justamente na parte da parede atrás da qual achava o corpo da esposa de meu coração. Deu que Deus me guarde e livre das garras de Satanás. O mau eco das batidas mergulhou no silêncio. Uma voz me respondeu no fundo da tumba, primeiro com o choro entrecortado e abafado, com os soluços de uma criança. Depois, de repente, com um grito prolongado, estridente, contínuo, completamente anormal e inumano. Um uivo, um grito agudo, metade de horror, metade de triunfo. Como somente poderia ter surgido do inferno, na garganta dos condenados, em sua agonia e dos demônios exultantes com a sua condenação? Enquanto aos meus pensamentos é loucura falar, sentindo-me desfalecer, campaleei à parede oposta. Durante um instante, o grupo de policiais deteve-se na escada, imobilizados pelo terror. Decorrido de um momento, doze braços segurosos atacaram a parede, que caiu por terra. O cadáver, já em adiantado estado de decomposição e coberto de sangue coagulado, pareceu ereto aos olhos do presente. Sobre a sua cabeça, com boca vermelha dilatada e um único olho chamejante, achava-se repousado um animal odioso, cuja astúcia me levou ao assassínio e a cuja voz reveladora me entregava ao carrasco. Eu sempre havia emparedado o monstro dentro da tumba.

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