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Onde estarias se não fosse o 25 de Abril - Sessão 3

Onde estarias se não fosse o 25 de Abril - Sessão 3

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Com Nuno Artur Silva e António Jorge Gonçalves. Moderação de Ana Margarida de Carvalho

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The conversation is about the 50th anniversary of the April 25th Revolution. The speakers are Nuno Astor Silva, a well-known author and TV personality, and António Jorge Gonçalves, a comic book author. They discuss their experiences during the revolution and how it shaped their lives. They also reflect on the impact of the revolution on art and culture in Portugal. The conversation touches on topics like the role of humor in society and the importance of education and freedom of expression. Overall, the speakers express gratitude for the opportunities and changes brought about by the revolution. Agradeço mais uma vez a Pilar, a Sérgio e a tudo o que foi por se abrogar a este ciclo de conversas sobre os 50 anos do 25 de Abril. Vamos falar sobre outras coisas, claro, porque as conversas são mesmo assim, mas também quero agradecer aos presentes. Hoje a sala está um pouco menos cheia do que a costume, mas vamos começar e vamos aguardar também que cheguem mais pessoas. Vou fazer também uma apresentação, que também não podia ser dispensada, mas por questões de protocolagem, porque isto vai estar gravado em podcast. Temos aqui o Nuno Astor Silva, que é muita coisa, autor, ficcionista, humorista, argumentista, fundador das Expressões Fictícias em 93, do Canal Q, administrador da RTP, secretário de Estado do Cinema, Audiovisual e Média. Há muitas, no tempo da pandemia, há muitos programas e coisas que o Nuno esteve ligado que fazem parte não só dos programas televisivos, mas também do imaginário popular. O Nuno esteve ligado a muitos programas do Hermano José, a Conta e Informação, ao Enemigo Público, aos Contemporâneos, ao Este Mal que Ainda Existe. Portanto, são várias vidas diferentes, barricadas, mas já vamos falar sobre isso. É curioso porque uma vez disseste, não sei se tens a manter essa ideia, uma vez disseste que gostavas mesmo de seres conhecida como... Artista de Variedades. Também já podemos voltar a esse tema. Curiosamente o Sonho, que esteve aqui numas edições passadas, disse que gostava de ser conhecido como Palhaço. Também é interessante. O António Jorge Gonçalves, também é um autor, também teve muitas vidas e passou por muita coisa. É autor de bandas desenhadas, novelas gráficas, tem este talento de conseguir desenhar em tempo real. Em espetáculos. Em espetáculos, nomeadamente aqui com o Nuno de Toursilva, mas também com músicos e com outros escritores. E talvez seja uma coisa que tem em comum este gosto, porventura, este gosto de cruzarem várias artes. O desenho com a literatura, o desenho com a música, tudo isto. Além de serem amigos, é uma dupla e que já trabalharam em muitos projetos, desde O Que Diz-me o Leste, que já não foi o primeiro, mas que já foi muito antigo, até agora, ou até o último espetáculo, Stand Up Comedy, uma dupla, um monólogo, como é que se chama? Um monólogo? Um monólogo acompanhado. Um monólogo acompanhado? Não. Era. Era um monólogo acompanhado. E chamava-se Onde É Que Eu Ia. Bom, mas finalmente o que nós temos é alguém que nos pode explicar com toda a propriedade, literalmente com toda a propriedade, de onde é que veio o tipo desta conversa. Nós vamos dar um bocadinho de tempo verbal. Antes de mais, obrigado pela convite, é um prazer estar aqui, é um prazer estar na Fundação José Saramago, é um prazer estar com o Pilar, com todos os espíritos que me invitaram, que me invitaram o seu tempo a vir aqui, e com a Ana Margarida e o Jorge, que de facto é meu amigo há muitos anos. A frase Onde É Que Estavas, no 25 de Abril, foi uma frase que o Batista Bastos dizia no programa dele, que ele tinha um programa na SIC, fazendo entrevistas, uma pessoa de cada vez, e havia sempre essa pergunta, que era Onde É Que Estavas, no 25 de Abril. E, na altura, nós fizemos um programa chamado Herman Encyclopédia, em que o Herman fazia a imitação do Batista Bastos, que foi um texto que foi criado, curiosamente, pelo Eduardo Madeira e pelo Henrique Dias, um dos argumentistas que trabalhavam nos professores de ciências, e, tal como o original, o texto tinha sempre a pergunta Onde É Que Estavas, no 25 de Abril, dito Herman a imitar o Batista Bastos, que era Onde É Que Estavas, no 25 de Abril. E ele fazia, por outras partes, que era, pois tinha muitas pessoas, mas nós nunca pensámos, porque uma das coisas, quando se trabalha em humor, nós nunca sabemos o que é que vai resultar. Ninguém tem a receita. E, muitas vezes, nós tentamos fazer frases que achamos que as pessoas vão repetir e depois não resulta. E há, às vezes, coisas que ninguém apostava. Tornam-se titulares como este. Eu lembro perfeitamente que, quando eu propus o Herman, que eu fizeste o sketch, eu disse Eu acho que isto vai dar para fazer uma vez e não dá para fazer mais. Aliás, desculpa, ele dizia, acrescentava mais qualquer coisa. Deixo-me dizer-lhe com toda a frontalidade. Acredito com a frontalidade. E, correu tão bem, fizemos para ele uma ideia de artista Bastos. E foi daí. Então, vamos passar à pergunta Onde É Que Estarias, no 25 de Abril. Onde É Que Estarias? Onde É Que Estarias, se não for no 25 de Abril. Claro, claro, claro. Eu sei que é um exercício complicado e exigente, mas acho que já o fizeste. Sim, eu fiquei cansado pela tarde, e a todos. Fiquei um bocadinho a pensar nisso hoje. Eu tinha 9 anos quando foi o 25 de Abril. Aliás, tenho a confessar que foi engraçado e tem a ver com a minha relação com a banda desenhada. É a coisa que eu faço mais desde pequeno. Porque quando foi o dia 25 de Abril, se não me engano, o Diário de Notícias estava a publicar todos os dias uma tira de uma história de Tintin em Caralho Negra. E eu era grande fã. Todos os dias via aquilo. Então, quando chegou o dia 25 de Abril, veio o Jornal do Anual. O meu pai não foi trabalhar, e a meia-da-manhã sai para ir comprar a 2ª edição. Mas eu não lembro se foi o Diário de Notícias ou a Capital. Mas eu acho que é o Diário de Notícias. E o que acontece? Eu fiquei numa excitação enorme porque ia ter duas tiras de Tintin, se houvesse duas tiras de Tintin na 2ª edição. Mas foi muito chato, porque a 2ª edição não trazia a tira de Tintin. Então, isso foi o grande acontecimento do 25 de Abril. Agora, eu fiquei a pensar realmente o que é que teria acontecido. Eu tenho dois irmãos mais velhos. Um 2 anos mais velho e o outro 4 anos mais velho. Somos 3 rapazes. E, enfim, a primeira hipótese que me vem à cabeça é se não tivesse havido isso. Porque, se calhar, eu estava nos critérios da Ifica. Neste momento, enterrado já em Fado Grossos. Porque seria o caminho mais provável, com a Guerra Colonial, que eu e os meus irmãos já fôssemos. Depois, a outra hipótese que eu pensei foi que eu tivesse, entretanto, ao crescer ganho uma consciência política. Mas, mesmo que tivesse ganho uma consciência política, eu lembro, por exemplo, do caso de um dos irmãos da minha cunhada, que teve uma consciência política e que estava marcado pela PIDE. E que, quando se foi à altura da recruta, mandaram-no para o sítio pior, que era aquele sítio onde, com certeza absoluta, ele ia, ou tinha grande probabilidade de lá ficar. Ele acabou por não ficar. Muitos dos colegas dele, no Itácio, ficaram. Mas, deste ponto de vista, a perspectiva não era muito boa. Agora, numa versão mais positiva, onde é que poderia estar? Há uma coisa que eu assisti, e que é difícil a gente destrinçar o que é que realmente o 25 de Abril abriu, ou o que é que o próprio tempo abriu. A gente não pode dizer um se. Mas a verdade é que eu, desde pequeno, desenhava. E tinha realmente essa intenção artística. Mas não tinha artistas na família. E, portanto, é uma família de remediados, para os quais a questão artística não é particularmente considerada. E eu penso às vezes que, se não tivesse abrido o 25 de Abril, se calhasse, eu não era artista. Provavelmente. Até porque, mesmo já depois do 25 de Abril, quando eu depois fui para as aulas de artes e tudo mais, eu percebi que o país, a nível artístico, era uma oligarquia. Ou seja, exagerando um bocadinho, dentro das mesmas famílias estava o artista, o galerista, o ministro da cultura, o diretor do museu. Era muito assim. E eu ainda conhecia algumas dessas famílias. Então, para alguém como eu, que vinha índio, correr completamente de fora, eu acho que foi muito daquilo que aconteceu no 25 de Abril. Principalmente de abrir-se um acerto à educação e abrir a mentalidade também, que contribui todo a hoje fazer aquilo que faço. Eu acho que eu não seria artista. Não sei se eu trabalharia numa agência de publicidade, enfim, qualquer coisa. Até é interessantíssimo isso que estás a dizer. Porque, geralmente... Agora estou a fazer um pequeno acordo antes de passar a hora. Porque, geralmente, quando se fala onde é que... Se não fosse o 25 de Abril, o que é que vão dizer? As pessoas dizem, em primeiro lugar, se não fosse o 25 de Abril, não estaríamos aqui a falar. E, se calhar, isso já se banalizou tanto, que se calhar vão dizer, se não fosse o 25 de Abril, havia 60% de pobreza, havia um analfabetismo avançalador, havia trabalho infantil, havia crianças descalças, havia taxas de mortalidade infantil no materno altíssimas, havia guerra. E, por isso, foi interessante também o António Jorge ter falado dessa perspectiva. Portanto, se calhar dizer apenas, se calhar não estávamos aqui a falar, é pouco. Mas passa-nos. Eu também fiquei a pensar o que é que teria acontecido. Eu gosto muito da ideia do íssimo, a história altas nativa. Há aquela frase do Borges que diz que a realidade não tem a obrigação de ser interessante. Mas as hipóteses têm. E isso é a base da ficção. Há coisas que eu sei. O dia 25 de Abril, para mim, ficou cristalizado na frase... Eu tinha 11 anos. Eu sou dois anos mais velho que o Jorge. Eu tinha 11. O dia 25 de Abril, para mim, ficou cristalizado numa frase que a minha mãe diz, que é já não vais à guerra. E eu, foi a frase que me marcou, porque qual guerra? Eu não sabia. Eu era um menino que jogava a bola e que ia a bandas desenhadas e que ia para a escola preparatória Emanuel da Maia, nesse dia, para o segundo ano do ciclo preparatório. E depois comecei a perceber, a partir dessa frase, e depois lembro-me que comecei a ver as imagens que as pessoas viram no dia 25 de Abril. Aliás, o dia 25 de Abril começa a ser primeiro na rádio e só depois na televisão, porque as primeiras imagens, a RTP não mandou pessoas para a rua logo, o que faz com que as primeiras imagens do dia 25 de Abril só aparecem depois. E são fotografias. E são fotografias, exatamente. E portanto, só de começarmos a ver a revolução da televisão, aquela frase, The Revolution on T. Foi. Nós desmentimos essa frase. A revolução foi, talvez, inana, mas com atraso. Com delay. Mas, de qualquer maneira, deve ter sido um bocado angustiante aquele momento em que a emissão é interrompida e assim umas marchas. Sim, sim. Nós vemos televisão toda a noite, mas na altura, à noite, eu já não me lembro bem da sequência, mas já apareceu o Fernando Palacinha a ler o comunicado à noite. E portanto, eu fui tentando perceber. As imagens postas foram, no dia seguinte, os presos políticos a saírem de Caxias. Isso foi uma coisa muito impressionante. E o ar educado. E as imagens depois do ar educado. E depois lembro, e tem uma imagem que tem a ver com o meu pai, que é o Bário Soares a chegar do comboio e o meu pai dizer, este é quem é. E aí iniciou-se na minha família uma decisão política, porque eu tinha um tio que era do Partido Comunista e o meu pai que era socialista-soberista. E eu comecei a crescer e a educar-me entre estas duas visões do mundo. Uma coisa depois que o meu pai me disse, e tem a ver com o que é que se não houvesse 25 de Abril. O meu pai depois explicou-me que se não tivesse 25 de Abril e se mantivesse a guerra, eu teria encontrado maneira de me pôr fora do país. Foi o que ele disse. Ele disse, de uma maneira ou de outra... Sabes onde é que serias? Não, porque o meu pai e eu, nós também não tínhamos, éramos uma família classe média, baixa, digamos assim, poucos recursos e poucos contactos. Eu percebi mais tarde que o meu pai tinha uma ideologia de esquerda, mas que era muito discreto e não tinha... Era obtuso. Era obtuso. Era discreto. E percebi porque ele me disse que o plano era, se a guerra continuasse, como eu fiz há 18 anos, o plano era pôr-me fora do país, encontrar uma maneira de me pôr fora em qualquer outro país. Mas felizmente não foi possível. Sim. De qualquer maneira, já te vi em entrevistas descrever imagens muito bonitas e muito vividas na rua, a descobrir santos, aos saudades do teu pai? Sim, porque eu logo no dia 25, não, mas no 26, nós morávamos em Campolide e, portanto, era ali ao pé de onde é hoje a Zambureiras e havia ali muitos janitos e havia metralhadores postos no chão. Eu lembro-me disso. O meu pai e o meu tio, os dois, levaram-me para descrever santos e cervejas aos saudades. Eu tenho essa imagem de andar a descrever santos e cervejas aos saudades, mas dizem-se que era uma coisa um pouco surreal, não é? Para um menino de 11 anos... Mas de qualquer maneira mesmo, tinha-se essa euforia dos adultos. Sim, sim. Não, havia uma opção. O meu pai era um tipo muito... pouco expressivo. Era um tipo muito... não dá nem noção. O meu pai estava absolutamente irreconhecível da alegria e, portanto, aquilo foi para ele uma coisa absolutamente extraordinária e estava numa situação... Essa imagem eu tenho porque não era normal ver o meu pai tão alegre. Isso eu lembro. Uma das coisas que eu penso muito em relação às hipóteses é se eu teria tido a vida que tive se não houvesse liberado. Ou seja, eu pergunto-me, será que eu tinha coragem de enfrentar o regime? Ou será que eu ia para fora? Não quer dizer que os foram para fora. Não tinha coragem, não é isso que eu digo. Mas, em termos práticos, é... Será que eu ia parar a prisão? Ou simplesmente ia fazer outra coisa? Pergunto-me isto muitas vezes, não sei. Não tenho resposta. Porque a minha atividade, fazer humor, entre outras coisas, se eu fosse humorista... Me, às vezes, perguntam se, ser humorista, sou de pessoas corajosas. Eu digo, não há acidente. Agora, ser, por exemplo, uma mulher humorista do Afeganistão... Isso, sim, é ser corajoso. Agora, ser humorista é um ano. Em Portugal, em 2020 e tal, não há de ser corajoso para isso. Agora, ser humorista num país muçulmano, por exemplo, em que o Estado é totalmente controlado por uma diocresia qualquer e em que não se pode fazer nada. Ou ser mulher e fazer piadas, isso, sim, é que exige. Interessante, eu penso, como é que seria, se eu fosse humorista, em Portugal, com a ditadura, como é que era? De bem que, enfim, é interessante, o mundo mudou um bocadinho, depois deste março, mas deixa-me só ver aqui o Leutânio Jorge, porque ele escreveu um livro recentíssimo, chamado Ditadores, separadamente. Sim, ótimo. Em que é um livro, também, muito autobiográfico, do que é que uma criança com nove anos sente. E tem-se frases muito fortes, tem-se frases muito fortes, em que diz, as mulheres têm que dar ao respeito. Portanto, é horrível, não é? As mulheres têm que dar ao respeito. Ou, as conventas que têm em casa não se podem levar para a rua, qualquer coisa assim. E eu, também podemos falar sobre isso mais adiante, mas não sei se é o seguinte, ou se fizeste mais, mas eu lembro-me de um livro muito bonito, que fizeste depois de estar doentas. A minha casa não tem dentro. Quase o teu vaso de perfume. Sim, é um pouco. Sim, este livro, eu andava na cabeça há muito tempo, é uma pequena novela grave, que eu fiz justamente sobre a minha infância na ditadura, até ao 25 de Abril. E eu tive a felicidade, porque este livro andava na minha cabeça, porque, pronto, eu sei que é um cliché, mas a minha filha tem 15 anos agora, eu às vezes falo com ela acerca disso, mas eu queria lhe deixar, eu queria lhe deixar isto, queria lhe deixar a história de como é que foi, de como a minha infância foi diferente da dela. E o ano passado, de uma iniciativa de anemórito, o Departamento de Edição da Assembleia da República decidiu fazer esta colecção chamada Missão Democracia, dirigida aos mais novos sobre vários temas. E convidou vários autores, e quando me falou, eu disse-lhe que queria a ditadura, porque eu andava com este livro na cabeça, é uma sorte, a gente encontrar uma encomenda que vai ao encontro de uma coisa. E então, eu ainda não sabia o que é que era este livro, mas eu tinha uma imagem, tinha toda a probabilidade de ser o início da história, e aqui está, e eu é. Porque tem qualquer coisa para mim de forte e de surreal, que é, eu estou na marquise da casa da minha avó, mãe da minha mãe, que é no canto pequeno, e na marquise, através dos vidros, vê-se a estação de comboios dentro da câmara. Eu tenho cinco anos, e estamos todos, todos quais estávamos em casa, eu, os meus irmãos, o meu pai, a minha mãe, a minha madrinha e a minha avó, estamos, em sentido, com ar sério, a olhar pela janela, a ver passar o comboio que leva ao caixão do Salazar. E este comboio ficou... O caixão do Salazar. O caixão do Salazar, ou seja, quando o Salazar morreu, o comboio fez um trajeto em Lisboa, pronto, tinha pessoas que acompanhavam o trajeto, foi até Coimbra, depois seguiu de Carrinha até Santa Columna. Mas, é responsável deste jeito. Nós estávamos dentro da casa, não é? Era uma atitude circunspecta? Era uma atitude circunspecta, era uma atitude selena. E isto ficou-me de memória de infância, porque me lembro-me perfeitamente disso, mas quanto mais eu cresci, me recordava desta memória, mais surreal e estranho isto era, e quando comecei a pensar no livro, mais isto fazia sentido, porque eu achei, isto era o tempo da ditadura, que até dentro de casa, nós tínhamos de ter esta atitude, ou seja, parecia que o Salazar estava literalmente em todo o lado. Era, e o resto fiz o que sou. Tenho aqui esta imagem, que foi a maneira que eu encontrei de traduzir isto, não é? Quero dizer, parecia que nós nem sequer podíamos ter os pensamentos para nós, não é? Ele tinha de saber tudo, nós não podíamos ter sequer pensamentos que fossem só para nós, não é? Aos nove anos, para além desta situação de estarem a observar o comboio, o que é que poderias sentir dessa falta de liberdade, dessa ausência de... Há várias coisas. Eu fiz o livro, obviamente, para traduzir isto, não é? São essencialmente pequenos pormenores. Para mim, uma das coisas que era nítida era... Bom, havia um pormenor que raramente se fala, o meu avô tinha uma mercearia e ele tinha dois empregados. E na casa do meu avô, eu já não apanhei isso, mas eles até viveram em casa do meu avô quando eu era pequeno, já não me lembro disso, mas eles estavam sempre muito para mim. E os dois tinham ido à Guerra Mundial e os dois tinham voltado mal. Um anel estava sempre a piscar os olhos, sempre, sempre a piscar os olhos, e o anel estava sempre a soar. E eu achava aquilo muito estranho. Eu me lembro, a determinada altura, de ter, sei lá, conversado com a minha mãe acerca disso e a minha mãe me ter dito que eles tinham voltado destrambelhados da guerra, não é? E, para além desta palavra, destrambelhados, para uma criança é extraordinário, não é? Eu até digo no livro que é uma palavra que me faz pensar em cair por umas escadas abaixo, não é? Mas havia alguma marca qualquer estranha que tinha a ver... Eu sabia que havia a guerra e que eles tinham voltado. Depois, tinha uma vez... Também é outra coisa que também está aqui no livro. Eu ia na rua com a minha mãe e a gente é bem chique, a gente vivia já mesmo naquilo que era o extremo da cidade. Havia bairros de lata, alguns, não é? E eu lembro-me de perguntar à minha mãe, um dia na rua, porquê que havia pessoas pobres, porquê que não podíamos ser todos ricos, e a minha mãe apertou-me a mão. E eu percebia que ela queria dizer para eu me calar, não é? E quais conversas são as que podem ter a ver... Exatamente. Depois, o meu pai... Depois, há uma parte, também, que está aqui no livro, que tem a ver com conversas, não tanto que aconteceram durante a ditadura, mas a seguir ao 25 de Abril. E isso é que foi a coisa que, de facto, eu anotei. Ou seja, quando aconteceu o 25 de Abril, a sensação que eu tive foi que tinha tirado a rolha do ralo da pilha. Porque, naquela casa, começaram-se a ouvir conversas que eu nunca tinha sonhado. Que nunca... Nada. De repente falava-se tudo. O 1º de Maio, eu lembro-me que foi absolutamente extraordinário. Nem eu tinha visto como é que podiam estar aquelas pessoas, todas na rua, com o ar vestido. É assim, de um momento para o outro, parece que abriram uma corzinha qualquer. Não é? E começaram a entrar as cores no filme. Foi. E lembro-me particularmente... Lembro-me de duas coisas muito. Uma, lembro-me das primeiras campanhas para eleições, que lembro-me de ir com o meu pai a três comissões de partidos diferentes na mesma tarde, e dizer uns seios autocolantes de cada um deles. Porque isso é o que eu associo muito a essa altura, que é... Antes disso só havia uma coisa, que era só as aspas. Não havia mais nada. E, de repente, haviam imensas hipóteses. E os meus pais não tinham... não tinham propriamente uma cultura política ao ponto de... Eles também tiveram de escolher, na altura, do cardávio. Então, tudo parecia possível naquele momento. A outra coisa que eu lembro é o meu irmão mais velho, que tem quatro anos mais do que eu. Portanto, quando foi 25, eu mesmo tinha 13. Portanto, em 75, eu teria 14. Perto de 5, por volta dessa altura. O meu irmão mais velho veio a estudar Advocacia, ser o nosso advogado. E era muito engraçado que eu lia o jornal. Já naquela altura, eu lia os jornais todos. E ele tinha amanhã de fazer comigo, que era o mais novo, a seguinte brincadeira que era. Agora, tu és do PS. Eu sou do PSD. E eu tinha de advogar as minhas convicções. E ele, claro, arrasava-me sendo do PSD. Depois, acabava a dizer assim... Ok, agora eu sou do PSD. E voltava-me outra vez a arrasar. Como não estava muito longe daquilo que ele depois viria a ser. Mas eu acho que isto era muito o pós-25 da vida que era. Tudo isto era possível. Nuno, já falaste do humor. Agora, continuando nesta senda dos vossos livros, da vossa obra, tens praticado muito o músculo vizigomático. O vizigomático, sim. É isso. Eu tenho falado nisso. Eu não sou um escritor no sentido romancista. Eu tenho esta ideia de que nunca percebi bem o talento que tinha, mas tinha muita vontade de me exprimir. E acho que com o tempo fui descobrindo que era escrever para... escrever para banda desenhada, escrever para teatro, escrever para televisão... Atores... Isso era, talvez, o meu talento possível. Porque era... juntava duas coisas que eu gostava muito. Uma era de ter ideias e poder transformá-las em palavras. E a outra é fazer isso com outras pessoas. Portanto, trabalhar com desenhadores ou trabalhar com atores fazia-me aprender muito. Eu gosto muito da ideia de trabalhar em equipa. E acho que tudo o que eu fiz de melhor foi feito em equipas. E depois o humor apareceu quase natural. É um acidente. Porque eu queria escrever para cinema em Portugal. Mas, em Portugal, escrever para cinema é um bocado como querer ser astronómo. Por quê? Porque o cinema aqui visto é pouco, é pouco financiado, e, normalmente, quem está no control é o realizador. Não é um cinema de argumentista, é um cinema de realizador. E, portanto, não havia muito espaço para ser argumentista em Portugal. E, portanto, fiz uma oportunidade que foi o Herman disse-me que ia escrever para mim. Nessa altura, eu tinha tido um convite para ir trabalhar na Arca do Fernando Pessoa. Tinha sido a minha professora, Teresa Rita Lopes, que tinha sido minha professora na universidade, que me tinha convidado. Porque, a tua área, és formada... Aquela coisa que é... Eu lia Paciências e a minha irmã, que é mais velha que eu, 14 anos, disse-me que estava com certeza que queria ir a Paciências. Passas o tempo a ler, a ver filmes, a ouvir música e vais a Paciências. E era aquela pergunta, aquela frase, tão óbvia, mas quero que fosse outra pessoa a dizer porque ela tem razão. Então, me dei para ler. Acho que era bom porque podia fazer o que uma pessoa quer, ler livros. E essa era a idade de andar a aulas de português. Eu fui dar aulas para o ODICEU e, entretanto, encontrei a faculdade. O Fernando Pessoa estava, nesse momento, a Arca a ser descoberto. Porém, que o livro era um livro desassociado. Tinha acabado de sair do livro, havia uma certa... A pessoa tinha caído no domínio público porque, segundo a lei portuguesa, 50 anos depois, em 1935, tinha ficado disponível para toda a gente. Depois, segundo a lei europeia, voltou a não ficar no domínio público quando entrámos na comunidade europeia. Resumindo. Tinha o convite de ir trabalhar na Arca do Pessoa e, entretanto, o Hermann disse-me que queria escrever para mim. Eu tive que pensar. Vou para o Pessoa ou para o Hermann? Acho que era um dilema porque as coisas eram distintas. E eu, sinceramente, pensei. O Pessoa morreu. Posso regressar se correr mal com o Hermann. Porque o Hermann estava vivíssimo e, se calhar, esta oportunidade ou é agora ou não voltará a ser. Mas tu já tinhas muito interesse por televisão. Eu adorava os Monty Python, que eram um dos meus fãs mais favoritos. E eu passei a minha infância a ver a RTP, a televisão, que era a única canal que existia. Portanto, para mim, as minhas primeiras memórias eu vi tudo na RTP. Eu não tinha vontade de fazer qualquer coisa de televisão. E por também não ser do tal canal, aquilo para mim foi... Há um português a fazer um humor desta maneira, anárquica. Da outra vez eu senti... Eu já tinha ouvido o Roção Nave. Eu gostava muito daquelas coisas do Roção Nave e gostava de algumas coisas do Nicolau Brechner também. Mas o tal canal foi assim. Tu, a certa altura... Eu estava até a perguntar se o teu livro não respondeste. Mas não faz mal. Tu, a certa altura, fazes aqui uma comparação. Já não sei de onde é que eu vi isto. Mas fazes uma comparação em que dizes assim... Em termos de humor, o Roção Nave é o Humberto Dalgar. O Nicolau Brechner é a Relação das Caldas. E o Herman é, então, o 25 de Abril. É uma comparação. O Roção Nave, sozinho, com aquilo que ele fazia, que eram os monólogos, introduzia um tipo de humor que não havia muito. Era um texto em espanhol. E eram textos que ele fazia mais diferente. E a figura do Roção Nave, ele solitário, foi, na televisão, a primeira grande lufada da estrecha de uma humanidade. Foi ele que fez. É como se fosse o Humberto Dalgar. Felizmente não teve o mesmo final. Depois, o Nicolau Brechner, que era um precursor, inventou ali um programa, uma vez que era no 25 de Abril, que se chamava Nicolau não fez as maravilhas. Onde já haviam os sinais de naturalidade. Mas não era um plano que tinha um tipo de revista? Era um pé na revista, mas já tinha ali qualquer coisa. Porque tinha músicas pelo meio, eu não me lembro. Mas tinha, por exemplo, um gozo até a uma novela, que era uma outra carrasca, que era uma coisa... Desculpa, eu não participava até a novela. O que é cómico ali é que era um gozo até a novelas brasileiras, o pioneiro da telenovela brasileira. Então foi antes da telenovela brasileira. Em Portugal, o gozo começou primeiro. E depois, o 25 de Abril, eu acho que foi o tal canal, que foi o primeiro programa que brincou com os códigos televisivos. Ou seja, não era apenas uma filmagem, uma gravação de sketches de revista. Não, era mesmo jogar com os códigos da televisão. E para mim, para qualquer menino da minha idade, Isso o diverteu? Já era, já tinha 21 anos. Lembro-me que aquilo foi uau! E depois eu sentia-me a gostar de algum dia fazer qualquer coisa ali. Há uma frase que eu já não sei quem é que disse. Há uma história que me contaram que depois do 25 de Abril, não é? Nesse tal preto, nesse tal pluripartidarismo, que atualmente, com a resolução de vários partidos e várias tendências, é tudo muito crispado também, não é? E a certa altura, numa reunião, numa reunião política, imagina, alguém diz uma piada sobre a resolução. A partir do momento em que alguém diz uma piada sobre a resolução, quer dizer que as coisas estão consolidadas. Recebe-se dessa ideia? Completamente. Sim, sem dúvida. O próprio mundo me perseguitou, a certa altura, no princípio deste século, de ser cartunista durante 18 anos num indivíduo público. Foi uma coisa que eu tive de aprender a fazer, apesar de tudo, há uma diferença muito grande entre nós inventarmos ficção e nós termos de desenhar sobre a realidade. Como é que era? Parece o início, mas, na verdade, é uma atividade completamente diferente. E, realmente, o humor tem, o humor marca um espaço. É um facto que marca um espaço. Tem essa possibilidade de marcar. Tenho questões muito delicadas que têm a ver com o timing. O humor, de facto, é muito timing. Ou seja... É muito linguagem? No sentido que nós podemos fazer uma piada acerca de um assunto num determinado momento. Hoje. E ela ser... Não ser aceita de todos, ser realmente um insulto. E, se calhar, daqui a uma semana já a podemos dizer. Depois, outra coisa que também é muito engraçada é acerca de que é que podemos brincar. Por exemplo, quando às vezes as pessoas me vêm a perguntar acerca da atuidade cartunista destes outros anos, se eu fui censurado, este tipo. Realmente, a maior censura que eu tive foi com uma marca. Foi com a Superbocca. Eu tenho desconto. Era verão. No verão, vocês sabem como é que é a silicida de tudo ficar assim um pouco. E a Superbocca, que há uns anos, nessa altura, já não lembro exatamente quando foi, foi fazer, no verão, umas campanhas muito sexistas. Aquela ligação entre a cerveja imperial e o corpo feminino. Umas coisas muito assim. E houve um ano, de facto, que eu, um pouco irritado mesmo com isso, apetecia-me fazer um cartão sobre isso. Então, o Luís Pedro Nunes, que era o diretor, ele... Ele disse, ó, Luís Pedro, eu tenho uma ideia, mas é para a página inteira do público. É para a página inteira. Eu disse, vá, vá. Luís Pedro Nunes, não queres que eu te diga qual é a minha ideia? Não, vá. Era agosto, não é? Não se passa nada. Não, vá. Faz à vontade. E então, o que é que eu decidi fazer? Decidi fazer um... um copo de imperial grande em que a espuma branca em cima era a cara, a boca aberta de uma boneca insofada. E em vez de chamar-lhe Superbocca, chama-lhe Superbross. Não é? Bom, quando o Luís Pedro viu isto, foi-lhe mostrar à direcção do público. E eu disse, eu ia pensar nisso. Porquê? Porque eu gostava de morder a mão de quem dá de comer. Ou seja, quem paga nos jornais são os anunciantes, não é? Então, se a gente vá às vezes ao pé e diz, ah, é o futebol, ou foi o político... Não! São as marcas, não é? Mas aí, igualmente, inquieta-me. Olha, mas não tem de pensar que se caia cá do nosso designo mágico. Ah, sim. É um livro que eu fiz para crianças. Porque sempre me fascinou esta ideia do que é o riso e como é que nós rimos. E o músculo que nos faz rir chama-se o designo mágico maior. Que é este músculo. E eu achei sempre que o designo mágico era o nome do mágico. O grande designo mágico. E, portanto, achei engraçada a ideia. E fiz a história de uma criança que não vai rir. Que encontrou outra criança que é mágica. Que tenta ser mágica. E fala um bocadinho sobre esta ideia do riso ser qualquer coisa mágica. É um truque que nos faz sentir como se fosse um bocadinho de felicidade. Ali, um segundo. Nem que seja por um segundo e nós somos felizes. E eu acho engraçada esta ideia do músculo. Há qualquer coisa mágica nisto. E, portanto, eu fiz uma palavra e, de repente, isto faz-nos rir. Alguém, um pequeno nível. Uma suspensão qualquer. Eu gosto desta ideia. E fiz-lhe uma história para crianças como os anjos do Pierre Cartier sobre isto. E há tantas coisas que eu gostaria de dizer. E eu pergunto, não terá havido uma fase na tua vida em que tiveste que conter um bocadinho mais este músculo? Como foi conter? Não, por acaso, não. Não, porque... Mas nem que há situações protocolares para testar mais voluminidade como não. É que, no final, eu fui para o governo e isso foi muito frustrante. Porquê? Porque eu não queria especialmente ir para o governo. Eu tinha estado na RTP e tinha adorado estar na RTP onde eu, mudeste a parte, senti, acho que fiz qualquer coisa útil quando estive na RTP. E depois estive na RTP e voltei à minha vida. E estava muito longe do povo. E surgiu-me o convite para ir para receber o Estado de Cinema, Audiovisual e Média. Que era, basicamente, a minha atividade. Ou seja, parecia feita à minha medida. E insistia muito para que eu fosse e eu fui. E então houve-lhe um plano, que o propriado dizia que era o plano mágico. Assim, passou-lhe o plano mágico. Que era juntar o cinema, o audiovisual... E tivemos a trabalhar, eu e o gabinete, todos, no plano. Juntar, visualizar, e fizemos aquilo tudo. E quando nós entrámos no final de outubro de 2019, começámos logo a trabalhar. É claro que por uma pessoa como eu, eu primeiro... Aquilo não tem nem que ter instruções, eu tinha que perceber como é que funcionava o quê. E como eu era independente e não era da PS, uma das coisas mais difíceis era saber quem era quem. Então, as fotografias dos outros membros do governo, eu tinha que saber este é o secretário de Estado de quem. Porque éramos muito sozinhos. E depois tinha que saber... Não sabia tudo. Portanto, eu estive mesmo a aprender quem era quem, tem que falar com este, tem que falar com aquele. Demorou três meses. Na última semana de fevereiro, eu tinha o plano pronto. Mostrei-o à ministra. E ela disse, ótimo, vamos embora. E eu disse para a ministra, para a semana, a ver se falamos com ela. Isto foi em março de 2020. Portanto, caiu o Covid e o plano foi para o alívio. E eu pensei, isto tinha de ter acontecido. A questão é, todo aquele plano deixou de ser possível. Portanto, foi muito frustrante. A partir daí, o que era preciso era, como todos sabem, todos se lembram, os artistas, em particular, ficavam muito desesperados. E, sobretudo, os performers, que deviam de atuar ao vivo. E viravam-se, quando é natural, para o Ministério da Cultura dizer, resolvam. E o problema é que eu não sabia como iria resolver. Porque eu tinha chegado há três meses, não tinha nenhuma especialização em políticas públicas. Aquilo que eu gave era uma ideia, quando o plano deixa de fazer sentido, aquilo que passa a fazer sentido é como é que vamos inventar dinheiros por infinitamente. Ou seja, passávamos a dizer quem é que tem mais influência junto do Ministro das Finanças. E aquilo foi mais bombeiro do que... E depois, tudo aquilo foi muito surreal. Porque, de repente, estávamos em reuniões em que estávamos com os computadores abertos e cada um estava na sua casa ou no seu gabinete e estávamos a falar com os outros, mas cada um estava no seu gabinete. E, claro, bom, isto é um país extraordinário. Portanto, eu várias vezes imaginei quantos deles é que estariam a fechar as janelas para a sur... Claro, com aqueles dinheiros enormes. Isto é para mim a surreal coisa. Pensem, eu durante anos trabalhei na equipa que fez o Código de Informação. Uma das coisas que nós fazíamos era, cada vez que havia um governo novo, era decidir que eram os bancos que tínhamos de escolher. E escolhíamos, dizemos, este que tem potencial para apelhar. Este vai a dar disparado. E escolhíamos, porque os bonecos eram caros, e, portanto, tínhamos de escolher bem. Tínhamos de escolher quais tinham que ser o Primeiro Ministro, os das Finanças... Havia uns que tinham que ser mesmo. Mas depois havia ali uma margem de dúvida que é, fazemos o boneco do Ministro da Administração Interna ou dos Negócios Comunitários? E, para mim, é muito surreal eu ter passado grande parte da minha vida a fazer bonecos e a cobrar com políticos. E, de repente, como se alguém estalasse os dedos, eu estava no meio deles e eu era um dos... Como se fosse um infiltrado. Ou um dos que enviava bonecos. E, portanto, era muito estranho. E, claro, eu não fazia... Mas não tinhas de precisar autopoliciar um bocadinho? Todos os ministros, naquela altura, até por escape. Nós ríamos imenso no mês, às vezes por nas vozes, às vezes por... tinha que haver um escape. E havia muito sentido de humor naquele governo. Porque, aliás, havia alguns ministros que até tinham bastante piada. Mas, de qualquer maneira, depois fizeste um... E quando saí, ao contrário do que acontece normalmente, que é quando se sai e faz-se por uma empresa ou algo assim, eu fui fazer um espetáculo de stand-up que ao mesmo tempo acontecia do governo. Pelo menos... Que era um espetáculo que se chamava Onde é Que Eu Ia? E que era, avisadamente, sobre ter sido interrompido por um governo. A verdade é que... Quando acabou a pandemia, quando a pandemia estava a dissipar, eu ainda pensei, bom, vamos lá ver agora se conseguimos recuperar o plano. Vamos pôr... Vai a discussão do orçamento e o PSA e o Bloco chumam o orçamento e o governo cai. Então eu tive um bocadinho aquela sensação do tipo que vai entrar em palco e é puxado por um... De repente voltei outra vez para o meu escritório Foi estranho perguntar. Mas bem, bem, é que é aquela fábula do escorpião ao contrário. Não é? Não consegue evitar o escorpião. Como outros não conseguem evitar pôr o menino a praticar. E isto vem de uma enorme atenção de todos os artistas, mas os humoristas em particular têm sobre as coisas. O Cabrisa Reis, na hora de uma entrevista muito recente sobre a retrospectiva, falou de uma atenção obsessiva que os artistas têm que ter. Concordas com essa ideia? Eu, daquilo que o Iver falava de curiosidade. Eu gosto mais da expressão curiosidade do que da atenção obsessiva, não é? Sim, eu acho que a curiosidade faz parte efetivamente. Acho que sobretudo, e fazendo aponto para aquilo que nos trouxe aqui hoje para falar, um regime em liberdade permite-nos ser curiosos, não é? É isso que um regime que não tem liberdade não permite. A curiosidade é inventar hipóteses também para as coisas, ou seja, não é tomar o mundo exatamente tal e qual como eu é, mas é poder levantar hipóteses ou criar ideias acerca de porquê que as coisas são de uma determinada maneira. Mas, se não as coisas partem muito das palavras e das situações, parte-se sempre do texto para qualquer coisa? Parte-se de uma ideia. Mas tu partes sempre de uma ideia visual? O que acontece é... Desculpa, tenho de puxar aqui os meus cabelos. A gente já desenhava nas paredes antes de escrever-se como espécie. Portanto, percebe... Ou seja, o desenho é uma escrita. É uma escrita que tem códigos diferentes, não funciona exatamente da mesma maneira, até porque a gente tem que se lembrar que a escrita nasceu para a apreciadia. Foi para isso que a escrita nasceu. Para fazer as contas, para registar, para saber o que é que havia. Eu não sei exatamente para quê que o desenho nasceu, mas eu não tenho bem a certeza que tenha dado. Eu andei a fazer com o Filipe Caposo, que é o pianista, uma pesquisa acerca do nascimento da arte nos últimos anos. Queria que a gente chegue a uma resposta, mas não fiquei com a ideia que ela tivesse. Então conta. Eu acho que quem fez o casal dentro foram as mulheres. Eu acho que fazia totalmente. Geralmente, andavam a fazer caçadas e trabalhos mais brutos, as mulheres estavam nos cavernos provavelmente a fazer as... É uma ideia possível. Mas nunca vi levantada por ninguém. Tenho pena. Não quer uma mulher que está a desenhar. Não, não. Isso é para trair o caso. O que acontece é que, nessa altura, tudo nos leva a crer que não havia especialização. Ou seja, todos tinham de fazer tudo. Portanto, sim, podemos imaginar... Até que o teatro se fez ao 25 de julho. Era isso. Não, mas é verdade, porque, por exemplo, uma das coisas que nós muitas vezes pensamos que é... Eu já não sei quem é que foi, mas, noutro dia, havia uma mulher que estava a pôr as pontas, também, obviamente, uma visão, não sei se há dados científicos, mas ela fala desta ideia que eu acho muito interessante, que é a ideia da cesta. Não é? Que a cesta existe, de facto, desde o povo helético. E porquê? Porque a gente fala sempre da caçada. Mas, para aquelas pessoas de há 30 mil anos, a maior parte do tempo, elas eram recoletoras. Ou seja, apanhavam plantas e sementes e frutos. E era isso com que se alimentavam. Ou seja, apanhavam um bicho e comeu. De vez em quando. A proteína era mais forte. Não, havia proteína porque comiam-se insetos, comiam-se bagas, comiam-se uma série de outras coisas. Então, o que acontece? É que, se calhar, o homem que vinha com esta coisa, que era quando o homem apanhava um bicho, vinha e fazia uma grande história, um grande rio, gostava, e um animal, e não encontrou o animal... Não, é que, ao considerar tantas imagens nas brutas, as labaredas... Sim, aquilo mexia, com certeza. Mas também é uma teoria. Não, mas é uma ideia. Não, não faz sentido. Porque, basicamente, aquelas lâmpadas, aquelas chamas que eles tinham, eram muito precoitantes. Portanto, é natural que tudo aquilo mexia. E até há várias teorias dentro do estudo da arte palietal que, nalguns casos, ou algumas brutas, que as próprias pessoas que as fizeram tivessem imaginado que os animais estavam dentro das paredes, e, portanto, que ao pintar, inspirado pelas formas, porque muitas daquelas pinturas são em 3D, ou seja, o bojo é aproveitado para ser a barriga do animal, e para aí adiante. Mas, eu estava a falar até essa coisa que toda a gente, de facto, fazia tudo. E, portanto, essa ideia de especialização na espécie humana, talvez esteja mais ligada, realmente, à chegada do Neolítico e com a humanificação do cereal e, de repente, toda a gente se começa a especializar porque é preciso isso. E há alguns que são os donos da plantação e já há outras pessoas que trabalham nela. Portanto, é essa história triste que começa aí. Mas, eu acho que, de qualquer modo, há uma curiosidade. Por exemplo, a minha fantasia correspondente à que tu tens em relação ao conhecimento da arte, é muito imaginar que há uma pessoa que está a fazer umas formas geométricas porque os vestígios mais antigos que nós temos de desenhos parietais são, essencialmente, geométricos. Não são figurativos. E que esse salto cognitivo que se dá e que está um bocadinho associado ao sapiens ou, pelo menos, ao Neandertal, para nós nos tornarmos aquilo que somos hoje, pode ter surgido da seguinte maneira. Está alguém a desenhar qualquer coisa que é, assim, mais ou menos redonda e há outra pessoa que não desenha, mas que é a que está a observar e diz assim, se tu dizesse agora assim, uma coisa assim, se parecia mesmo uma vaca. Não é? E, portanto, esta é a ideia de que tudo está junto, ou seja, e que a arte nasceu não só de quem vês, mas de quem estava a olhar. Ou seja, a arte nasce com o espectador, se calhar, também. Podemos passar, se calhar, a partir desta pessoa que está a dizer que, se calhar, se acrescentasse ali qualquer coisa, poderia aparecer uma vaca. Para os vossos trabalhos em comum, de Paleolíticos para 1973. É muito engraçado. Nós conhecemos o Clube desde Bando de Nada. Eu tinha 9 anos, não, ainda tinhas... 14. 14 anos, eu tinha 16. E eu fazia um fanzine sozinho. Um fanzine é uma revista de Bando de Nada, que era tudo sozinho, feito por eu. E eu tinha outra revista com outras pessoas. E começámos a falar e a buscar ideias. E aí tivemos uma poémica, porque ele era muito católico naquela altura, e eu já não era. E começámos a ter uma troca de ideias. Depois passaram os anos e eu comecei a fazer teatro. E um amigo comum disse, olha, quem podia fazer o cartaz no teatro era o Jorge. E portanto o Jorge fez o cartaz das minhas duas primeiras peças. E depois começámos a ficar amigos. E depois fizemos a Bando de Nada e a Bando de Nada foi simples. Foi em 1992. Foi em 1992. Foi um jornal de teatro que nos convidou. Convidou-o a eu para fazer uma Bando de Nada e ele convidou-me a mim para fazer a história. Já agora que está a ser relançada. Está a ser apresentada agora. É curioso, porque eu adoro essa vossa Bando de Nada. Foi, aliás, premiadíssimo. Mas Lisboa já não é aqui o canal. Mas agora se tivesses que fazer os desenhos outra vez, tinhas que pôr Tuktuk, tinhas que pôr AirBnB. Pois, pois. Eu tenho continuado a desenhar. Lisboa é talvez a coisa mais presente nos meus livros destes anos todos, não é? O que acontece é que o futuro é relativamente inaugural. Para grandes pessoas de 1 metro e 10 cidades. Com certeza. Mas Lisboa tem estado sempre presente. O que acontece é que foi uma série de juventude. Era uma outra altura. Eu acho que há coisas centrais minhas e do mundo que continuam a estar naqueles livros. Mas, caramba, tem 30 anos, não é o primeiro. Então, é... Sim, Lisboa já fez uma viagem muito grande desde essa altura. De qualquer maneira, naquela vossa série era possível andar com o André Ferreira Paes. Não, aquilo de Lisboa é o que era o que nós pensávamos na altura. Isto foi feito no início dos anos 90. E nós temos muito esta ideia que é... Nós viemos em ditadura até 74. Os anos de seguida de 74 foram anos muito políticos. Toda esta cidade estava a fazer política. E aquilo que nos outros países foi a emergência da cultura pop nos anos 60. Isto é, os Beatles, a pop art, tudo. Em... O Mai 68, o swing em London, São Francisco, o rock. Nós apanhámos isso no fim dos anos 70 e 80. Os anos 80... E já, muito nos anos 80. Ou seja, é nos anos 80 que começa o rock português, sair à noite aos bares, a moda... Ou seja, toda a arte pop começa com 20 anos de trabalho em Portugal. Ou seja, aquela arte em que os protagonistas têm idade jovem, são jovens. Ou seja, é só lembrar-nos um pouco. E isso traz também uma arte pop sobre as cidades, porque é a consagração da cidade. Barcelona, por exemplo, estava uns anos à frente. Lembro-me que nós tínhamos ido a Barcelona separadamente, eu tinha ido. E Barcelona, por causa da Expo também, estava vibrante de imagens. Havia Mariscal, havia imagens sobre Barcelona... A cidade é uma grande máquina de inventar histórias. Exatamente. A movida madrilena, o Almodóvar... Estava tudo muito forte. Nós aprendemos isso também nos anos 80. E portanto, chegámos ali. O Felipe Simpson, que é um da nossa bandeja, é do início dos anos 90 um bocadinho antes da Lisboa 94. Porque Lisboa só começa a produzir imagens a sério sobre si própria com a Lisboa 94 e depois com a Expo 98. Que é a celebração da cidade. O que me interessa é que a riqueza de uma cidade é a capacidade que essa cidade tem de gerar mitologia. Ou seja, quanto mais mitologia uma cidade fizer, mais flotéria. Nova Iorque é Nova Iorque. Porque tem muitos filmes passados em Nova Iorque, muitas canções sobre Nova Iorque, muita imagem produzida, muitos artistas. Nós só tínhamos sido a bandeja da Lisboa. Hoje em dia, a Lisboa contemporânea, apesar do turismo, está a fazer uma espécie de Disneylândia geral. Mas a verdade é que hoje a Lisboa já é a Lisboa do Pessoa, do Ser Amado, do Puduro, do Dino Santiago e daqueles músicos. É a Lisboa de jogar futebol, é a Lisboa... Ou seja, tem muitas camadas. Antigamente era só a visualista, a das variedades. É a capacidade para produzir imaginário que faz a riqueza da cidade. Eu acho que nós sentimos isso no início dos anos 90. E a banda desenhada permitia uma coisa fantástica, que é apetite de fazer uma cena na baixa, mas queríamos que a baixa, a ver se tem como é, fosse com gondolas e com canais venezianos. Então é para desenhar. Não era para desenhar. Não tinha que estar à espera da autorização, mas desenhá-lo. Estava literalmente nas mãos do Jorge. E se nós fizéssemos, por exemplo, e se a Batirica da Estrela fosse transformada numa grande discoteca, onde havia um desfile de moda. Bora, desenha-se. E foi assim que nasceu o Puduro Cinco. E tínhamos essa possibilidade, que para nós era muito interessante, de misturar épocas passadas com épocas utópicas. Por exemplo, a Costa da Catarica, o Jorge desenhou-a segundo o projeto do arquiteto Cassiano Branco, que nunca se foi ser feito. Mas, por exemplo, o Aqueduto das Águas Livres foi buscar pinturas do século XIX, que mostravam o Aqueduto e o Ribeirão, que ainda está a passar por baixo. E, portanto, o que é agir na banda desenhada era a possibilidade de misturar tempos futuros, visões, e isso nós filhamos muito. Mas isto também nos remete um bocadinho para o que diz Molero, que eu queria repor antes, porque me enganei nas datas, porque o que diz Molero também é um retrato da cidade e das mitologias, e das maneiras de falar, e das oralidades e dos bairrismos de Lisboa. Tu dizeste mais a parte da capa no canto do livro, e dos figurinos e dos decores, mas não sei se o livro te diz tanto como diz o Molero. Sim, sim, o livro que é o livro mais do mundo, foi um livro que trouxe respeito para a minha vida, mas eu trouxe-lhe um rompante e ficou um dos livros da minha vida, sem dúvida nenhuma, não é assim? É uma bomba de muitos géneros, por exemplo, a própria o próprio convívio com o Dinis e a figura do Dinis se tornou muito inspiradora, porque o Dinis, de alguma maneira como artista, como figura que eu conheci, e tenho conhecido vários e lidado com vários, mas o Dinis fazia muito aponto para a minha infância na ditadura, para esse Portugal que, literariamente curiosamente, o livro onde eu sinto mais esse Portugal, é o Ano da Morte de Ricardo Santos. Indóvido, recentemente. É impressionante. Eu leio aquele livro, eu sei que eu não estava vivo naquela altura, mas aquele livro vai assim, direto à minha sensação toda, de pele, do que é que era a Lisboa antes do 25 de Abril. Está sempre a chover, não sei se... É, tudo aquilo, tudo aquilo. É, completamente. Mesmo dessa maneira, o jantar sozinho no restaurante, a maneira que os empregados estavam a falar com eles. Tudo, tudo, tudo. Eu parece que estou a sentir eu estou a agarrando da morte de Ricardo Santos e parece que estou a sentir o cheiro do chão de madeira de casa da minha avó, do silêncio e da escuridão dos quartos interiores. Está lá tudo. Mas, o que eu estava a dizer é que o Dinis, de alguma maneira, faz essa ligação. Porquê? Porque o Dinis é uma pessoa com um mundo e um imaginário e o livro do Clígio Muérguez é, curiosamente, onírico. Mas, ao mesmo tempo, e aquela coisa dura muito cinematográfica, mas, ao mesmo tempo, o Dinis é um homem... O Dinis não é um escritor do Grêmio, não é uma pessoa que vem da elite intelectual. Não é? E é aquele rapaz escondido atrás do caixote no bairro Alto, a ver os marinheiros na brincadaria. Não é? E isto, para mim, de facto, tudo foi como se quando eu olhasse para o Dinis, eu pensei... Ah! Então isto pode ser... Porque lá está. Porque eu, quando tinha, por exemplo, chegado às Belas Artes, tinha-me muito confrontado com, por exemplo, na minha turma, quando eu cheguei às Belas Artes, quase toda a gente ou era filha de artista ou era da alta produzia. Da tal ou igrequia. Então, quando eu olhei para o Dinis, pensei... Ah! Então é possível! Quer dizer, não é que eu não tivesse visto que era possível que um, mas vinha alguém de uma geração anterior. Não é? E depois, porque também havia uma questão um pouco filial que, de alguma maneira, me ligava, que era... Eu, quando tive 14 anos e fazia o meu fanzine, fui... O Vasco tinha um programa completamente icónico sobre animação. O Vasco, ao programa meu, entrevistou, foi a minha primeira entrevista e eu convidou-me a ir às instalações da revista Tintim, que era uma amadora, e onde também estava a gráfica que imprimia. E eu, na altura, por exemplo, lá com o Dinis, não o conheci propriamente, mas quando me levaram à gráfica e eu vejo a máquina da receta vomitar aquelas folhas enormes cheias das bandas desenhadas que eu lia todas as semanas, eu lembro-me claramente, eu olhei para aquilo e disse, é isto, eu vou querer um dia estar aqui a ver sair da máquina as minhas próprias bandas desenhadas, não é? Então, o Dinis também tinha, curiosamente, isso. Embora o livro não fosse, o que diz Moer, não fosse especificamente sobre isso, mas a verdade é que tinha esse crossfade. Agora, o que diz Moer, é realmente um acontecimento extremamente feliz e inusitado na minha vida, porque eu trabalhava com as minhas bandas desenhadas e o Dinis diz-me, olha, estou aqui a ver com o António Feijão Zeiteira, que eu já tinha conhecido, porque não era especialista em organizar recitais, palestras, conferências, o que quer que seja, mas ela já os tinha conhecido. Até me lembro numa sessão, mas isso não foi Alexandra, não foi o António Zeiteira que leram aquela sessão B34 que leram a parte da prenderaria, justamente do que diz Moer. E ele diz-me, olha, vamos fazer uma peça de piadas, pá, tu não queres vir projetar uns desenhos de Lisboa? Quando eu conheço o António Feijão, o António Feijão volta-se por mim e diz assim, ouva, mas desenhos, porque é que não fazes tudo? Porque é que não fazes a cenografia e os figurinos e os adereços? Eu disse-lhe, eu não sei nada de teatro, eu nem vou a teatro. Mas a verdade é que fiquei um pouco à rasca, mas acabei por avançar. E a minha grande sorte, essa que é a verdade, é que nós fomos fazer isto na Zona Média, onde havia uma equipa de cenografia super profissional e uma mestra de costura também, e portanto eles basicamente me salvaram, porque eu na realidade desenhei aquilo como se fosse uma banda de meninos. Eu basicamente peguei uma série de desenhos... As figuras são figuras de BD? Completamente, desenhei tudo, e só foi ter uma equipa de profissionais excelentes que permitiu realmente tornar aquilo realidade. Aliás, até teve o pronome cómico que um dos elementos da equipa de cenografia me contou anos depois que quando lá fui levar aqui os desenhos, eles ao seguir ficaram uns meninos treze, decidiram se me lixar ou não. E a minha sorte é que se viraram lá. A história do Moleque, o que diz o Moleque, foi um livro que saiu em 1977. Três anos depois da revolução. O Dinis Machado era um jornalista de futebol e um crítico de cinema. Era nisto que ele ganhava a vida. E trabalhava numa agência que era a agência com o Rosado Pinto que era outra figura. E o que é que eles faziam? Era o que eles iam para fazer. Entre outras coisas, por exemplo, escolher as histórias que iam na revista Tintin, que o Dinis escolhia com o Vasco Granja. E o Dinis vivendo nisto pescados. Uma crítica de cinema para ali. E uma das coisas que ele fazia era escrever romances policiais. Mas como naquela altura para vender romances policiais tinha que ser com autores com nomes em inglês, estrangeiros, ele assinava os romances policiais com o nome Dinis Machado. Porque era a única maneira de as pessoas contarem. Só que os romances policiais do Dinis eram completamente loucos. Porque eram sobre dilemas existenciais. Não eram... Uma mistura de romances policiais com... Não, não eram. Eram coisas extravagantes. Mas ele contava que se reunia com o Rossano Pinto, que também assinava Ross Pino. Ele conta, por exemplo, um dia contava-me que o Ross Pino um dia lhe disse vai, tenho que me ir embora esta semana, tenho um romance que vai acabar, tenho que entregar a segunda feira. Ah, vamos escrever um romance? Não, vou começar. Era assim que eles produziam, literalmente, a metrofeira. O Rossano Pinto, depois, quando houve o jornal do Incarível, não sei se vocês ouviram, o Rossano Pinto escrevia o jornal dos Incaríveis autores. Foram os precursores das fake news, porque faziam estes jornais. E, portanto, é este Dinis Machado, o rapaz do Bairro Alto, o pai dele tem um restaurante no Bairro Alto, ele vive em Bairro Alto. É este rapaz que um dia ao topo da rua, ou seja, do nada, faz este livro, o que diz o leiro. E o livro toma-se um best-seller. Eu apanhei este livro em 1978, eu estava num liceu, Pedro Montes, e nunca me esqueço, que eu era sócio do Circo dos Leitores, é uma coisa que eu lá consigo dizer. E há um colega meu, que era guitarrista, que me dizia assim, olha, leia este livro, que és capaz de prestá-lo. E fui eu a primeira pessoa. E eu sóciamente li o livro dos Circo dos Leitores, e não me lembro de abrir o livro. Ao princípio é estranho, porque duas pessoas com o nome de automóvel, o Austin e o Mr. Deluxe, a falarem da vida de um rapaz, que nunca falam do nome, e a vida do rapaz é contada por um tipo chamado Molero, que escreveu um relatório sobre o rapaz. Isto é assim uma coisa estranha. Mas eu começo a ler aquilo, e aquilo é fascinante, porque mistura poesia, palavrões, tem uma descrição de pancadaria absolutamente cómica, depois tem a vida do rapaz, e eu comecei a perceber que a vida do rapaz era alguém da geração do meu pai, e, entretanto, pronto, redundifico. O Jorge sentiu o que é. Afinal, isto é possível fazer literatura assim? É isto que eu vou fazer? Eu quero fazer isto. Ao salto temporal passaram-se os anos. Já um bocado, eu não sei se isso faz sentido, mas o Zinho fala muito na literatura marginal, e ficou até desangrado quando deram o prémio Nobel a Bob Dylan, porque estavam a visualizar uma... Mas é um bocadinho essa fusão de várias regiões. Não, o que é incrível, eu lembro-me de ler na bandana de um livro vários comentários, e havia um do Eugênio Dandrano que dizia este livro é uma alegria. E era verdade, porque era alegria da linguagem, mesmo no drama e tudo, era, pode-se fazer tudo com as palavras. Ele, de um momento, tinha uma descrição de uma cena de pancadaria, como eu disse, no outro tinha um momento poético, que era a relação dele com o amor impreciso, com o apetite de Mireille, que era a namorada francesa, dava para fazer tudo. E eu fiquei fascinado com aquele livro. Isto li-o pela primeira vez como... Eu tinha quase 18 anos, ou menos, até 17. E depois passaram muitos anos até que o António Feio... Ah, e eu lembro-me que eu fazia os tais recitais e leituras, e num desses recitais convidei o António Feio e o José Pedro Gomes para lerem um bocadinho do Molero. E, quando vem a Lisboa em 94, o António Feio diz-lhe, tens alguma ideia para a gente apresentar a Lisboa em 94? Eu disse, tenho. Vamos fazer o Molero. E ele diz, então, prepara-lhe o projeto. E nós, eu disse, então, nós é que pedimos de mãos lentas para o Molero, e, portanto, eu e o José João António, e, portanto, é que ele começou a ver a minha forma. Fomos ter com o Dinis, para lhe pedir a autorização, e o Dinis Machado diz assim, é a minha fada. Isso é muito complicado, porque, vejam, vocês vejam lá, o Fernando Lopes tentou fazer-se e desistiu. O Felipe Laféria tentou fazer-se e desistiu. Epa, vejam lá, se não vão perder tempo com isso. Houve muita gente que tentou. Epa, vocês vejam lá, são também dinheiros. Eu estava preocupado demais. Eu disse, mas façam logo o que quiserem, façam logo o que quiserem. Então, nós começámos a fazer. Eu lembro que, tipo, tudo colocou bem, tratámos. Não é lógico que aquilo ia funcionar, não. A maneira de adaptar aquilo eram dois tipos de uma organização que estavam a ler um relatório sobre a vida de um rapaz. E, na visão do Dinis, aquilo era um bocadinho pidesca. Eram dois tipos que controlavam a vida. Na nossa versão, aquilo que eu acho que era divertido, era como se fosse personagens de animação fascinados com aquilo que eles não têm, que é a outra dimensão, que é a memória. Era como se fossem pessoas que não sabem bem o que é o tempo. Portanto, eram personagens de papel fascinados por aquilo que os humanos têm e que definem os humanos. A matéria que são feitos os humanos é o tempo. E o tempo Jesus, por memórias. Era um perfeito conceito. Então, no dia da estreia, no dia do ensaio, eu levava-lhes o Dinis a ver. Eu lembro-me de levar lá o Dinis e a última coisa que ele me disse foi quero mesmo fazer isto. Mas depois ele viu... Foi encorajador. Não, ele tinha medo por nós. E quando ele viu, adorou. E depois adorou porque tivesse sido o mesmo. E ficámos amigos desde lhe disse. E eu sempre sei, o Dinis é uma figura desconcertante porque é tudo que a literatura depois, o mundo literário, não é. O Dinis depois não tinha jeito para nada. Quando foi a estreia, para nada, quer dizer, para nada de enxergar a representação social, ir aos encontros, não tinha paciência. Eu lembro-me quando foi a estreia do Cadiz Moedas em São João do Porto. Fomos muito bem recebidos pelo Ricardo Paia. E, de repente, o Dinis desapareceu. O Dinis tinha fugido para um hotel para ver o Sportman. Olha, eu penso aqui que temos aberto algumas perguntas que podem aparecer. Mas agora voltando aqui ao 10 de Março, que foi bastante chocante, e também ao facto de teres passado alguns momentos complicados com o humor, com o Herman. Provavelmente lembram-se, não é, a questão da última ceia que não foi censurada. Foi o quê? Foi muito criticada. Foi um exemplo interessante de como, no facto, não foi censurado. O Herman, ele próprio, tinha sido censurado antes. Mas eu acho que nós estamos a viver tempos estranhos novamente. Tu achas que qualquer coisa parecida pode voltar a acontecer? Com estes 50 senhores? Agora é de outra maneira. O que aconteceu aqui? Eu escrevi o sketch da última ceia, que na altura quase foi cortado. Escrevi o Américo no Marco. E o Herman fez, mas na altura houve muita discussão. O ponto central foi que os católicos queixavam-se que aquilo era um gozo, era uma coisa que para eles era mais sagrada, que é a última ceia. E, portanto, não se devia gozar de uma coisa que incomoda tanta gente. E na altura, aquilo passou na RTP e a RTP é a coalizão pública. E houve muita discussão. Lembro-me, por exemplo, que o líder da oposição, na altura, que era o tal Marcelo Roberto Souza, que deve ter ouvido falar, ele era da opinião que o sketch não devia passar. Porque era um país católico. Na altura, a RTP tinha uma direcção independente. Curiosamente, o diretor-geral era o Joaquim Furtado. Ele é o homem que deu o comunicado do 25 de Abril. E o Joaquim Furtado e o Joaquim Vieira, que eram diretores de programas, decidiram, os dois, que o estado é laico, que há uma alteração entre a Igreja e o Estado e que o sketch deveria ser emitido porque estava o abrigo da liberdade de opinião. Já tinha havido aquela macacada com o José Luís Mario? Tinha. Aliás, isso também pode contar brevemente uma história cómica sobre isso, que é, por causa do papo resumido, o sketch passou, mas houve muita indignação de alguns atores, da Rábia e da Religiência. A Rábia e da Religiência, exatamente, que fez uma campanha contra o Hermann. Eu não atualmente me lembro de ver o Miguel Portas. E eu dizia, sim, mas seria muito mais ofensivo não ter a liberdade de poder fazer o sketch. Nós, quando fazemos humor, de uma maneira ou outra, podemos estar a ofender alguém, mas temos que ligar no Estado que é impossível ofender as pessoas. Ou seja, ofender é apenas uma consequência da liberdade de opinião. Portanto, não deve haver limites ao humor, a não ser o bom gosto e o bom senso do próprio humorista, que se sujeita às condições. Outra coisa é estação emissora. Isto é, um canal público tem a obrigação, por exemplo, de não passar sketchs racistas, ou tem a obrigação de não passar desconhecido-ódio. E isso é outra coisa. Mas o humorista não há que ser... Já estás a falar de questões constitucionais, não é? Pois não. É importante. Porque eu acho que, para o artista, seja ele humorista ou seja ele... não pode haver limites. E mesmo as coisas mais horríveis podem ser objeto de humor. Fazer pianos sobre a guerra, não é uma questão de... O tempo é a ser demais. Agora, por exemplo, fazer piadas, sei lá, fazer uma piada sobre a situação na Palestina pode ser horrível. Não deve ser proibido. Não deve ser proibido. Mas se alguém fizer uma piada de mau gosto, fica catalogado como humorista de mau gosto. Fica com os recebedores um pouco esquisitos. Mas eu acho que se vos vou perceber assim, está certo. A pessoa faz as piadas e só vê as consequências das suas piadas. E parece-me que o sistema assim funciona. Não é preciso muito mais. Agora, o que estamos a assistir hoje em dia é outra coisa, que é, de facto, uma tentativa de imposição através do controlo da opinião. E o que para mim é muito insuportável é que muita cultura de cancelamento vai numa área onde não gostava de ir. Eu que sou de esquerda e tenho formação de esquerda, fico muito desconfortável quando vejo vir da minha área política um discurso de cancelamento em relação à opinião. E que não se pode fazer piada sobre isto e que não se deve fazer piada sobre isto. Porque é a lógica mais proibitiva do que propriamente surgir alguma coisa. É a lógica proibimentista. Proibimos aquilo, proibimos aquilo. É assim, não se pode. Nós, em ultimato, não sabemos quem estamos a ofender. Eu posso fazer uma piada que ofende escritores, outra que ofende pescadores, outra que ofende aquela pessoa que não quer. Mas se eu vou impedir de fazer as piadas à partida, então estamos a ir por um caminho muito perigoso, muito perigoso. E, portanto, é isso que eu acho que está a mudar. Eu estava mais a referir-me não à cultura woke, mas à cultura misógina, racista, à normalização dos discursos anti-imigrantes. Sentes que isso pode interferir no teu trabalho? O que eu sinto que está a acontecer agora é um bocadinho uma inversão em relação a essa questão da censura. Ou seja, a maneira como eu sinto mais é mais o perder do início e um nivelamento, essencialmente. Essa parte, para mim, é mais difícil. Ou seja, a boca de café ou misógina passa a estar exatamente ao mesmo nível que a frase escolhida ou que o pensamento profundo. Ou seja, o falso passa a estar ao mesmo nível que o fundamentado. E isso é que, para mim, é o mais complicado. Ou seja, como se, de repente, a única regra do jogo é eu apetece ou não apetece dizer isto. E, óbvio, todos nós temos posições negativas. A gente, quando olha para as nossas versões em pequenos, em crianças, a gente vê como nós temos lá tudo. As crianças são capazes de ser extremamente perversas e de deixarem de ser, ou seja, alimentarem vão. Portanto, todos nós temos realmente maus instintos cá dentro. E o que eu sinto agora é ter ido a esse espaço como um cinto. Pode ser possível principalmente quando nós vemos as pessoas que ocupam os lugares e meios de representatividade a terem esse tipo de comportamento, isso é um sinal para toda a gente que já se pode dizer essas coisas todas. Então, é um bocadinho um inferninho ao contrário. Não vejo tanto a... Aliás, é muito curioso que esta questão que se pôs do que aconteceu na Assembleia da República é colocada como uma questão sobre a discussão do direito de opinião. Mas é curioso do lado... De que lado é que isso vem? De que lado está a referir-te? Estou a referir-te àquela história mais do que o futuro, que é o aplauso unânimo da bancada do Chega ao aviar branco que aparentemente vem definir o direito à liberdade de expressão. A questão já não está no que se pode dizer, já não está no proibir o que se pode dizer. Eu acho que é ao contrário, que é deixar de haver basicamente tudo aquilo que me apetece a dizer eu posso dizê-lo. E eu temo, de facto, nesse sentido eu temo, porque é isso, eu acho que nós estamos cheios de sentimentos que não são bons. Mas, quer dizer, eu não volto caso sendo pessoas criativas que têm que criar e que têm que... Estar livres de todas essas barreiras e de todas essas imposições e de toda essa visão retrógrada. Não sei se pode haver aí um perigo mais... Eu também... Se aproxima com algum perigo de idade. Eu também gostava só de dizer uma coisa, que é, eu acho que também estamos num momento muito interessante de transição. Por exemplo, todas as questões que se fala hoje que são questões socialmente fraturantes, as questões de género, as questões de representatividade feminina, as questões do racismo. É muito interessante que estamos a viver este momento, mas é um momento complexo. E é complexo porque, por exemplo, uma das coisas que se instala muito hoje num chamado fenómeno é a questão do lugar de fala. E que gera situações que às vezes parecem pericadas. Então eu, porque sou homem branco, não posso contar uma história de uma mulher negra. E, se calhar, nossa primeira tendência nós brancos que aqui estamos, será dizer claro que não, toda a gente pode dizer o que quiser. Mas na verdade é que eu compreendo que, ao querermos dar uma visibilidade e dar a hipótese de dar uma outra versão e uma outra visão das coisas, pode realmente parecer abusivo para uma mulher negra, depois de toda a invisibilidade destes anos, ainda dizer mais uma vez um homem branco que vai contar a visão dela sobre as coisas, não é? E, portanto, eu acho que às tantas estamos num momento em que é difícil, de facto, se calhar traçar linhas, assim, claras, há mais a necessidade de navegarmos este período que eu acho que é mais de transmissão para qualquer coisa. Espero eu. Mas, Nuno, aqueles sketchs que se faziam com brancos pintados de negros, é uma visibilidade? Sim, eu concordo. Eu acho que é muito interessante o que pode vir a acontecer. Porque se não discutir realmente coisas... Eu sou de um tempo, e alguns dos que são aqui se lembram, que vêm de outras soluções homossexuais, extremamente racistas. Sobre as horas, sobre a luta... Ou, por exemplo, que a figura, por uma maneira como os homossexuais eram retratados, portanto, em muitos teatros de revista, que eram gozados pelos... o ar é feminado... Isso, hoje, já não é possível. E ainda bem. Mas não foi preciso proibir. Foi preciso, foi, digamos, ter uma agenda social que o fez recuperar os direitos de todo esse tipo de... O que é importante agora é a dinâmica que está a acontecer. Eu digo-lhe de outra maneira. Se houver um humorista que faz piadas, tipo São Laura Magel, quer dizer, se há pessoas que riem com aquilo, então, ele pode não ser um humorista racista, e aquelas pessoas que riem são racistas. Portanto, o sistema funciona do ponto de vista de que cada autor cria o seu público. Ou seja, a própria dinâmica social faz com que esse tipo de perspectiva vá, digamos, sendo de moda. Seja completamente inadequada. Não é aceitável ter o padrão dos descobrimentos em Blaine, e ainda não ter o memorial da escritura. Agora, não quer dizer que se vá deitar abaixo o padrão dos descobrimentos. O que é preciso é, e é urgente, é contrabalancear isso com o outro lado. Com a criação de outra visão. Em que, se calhar, progressivamente, o padrão vai desaparecendo. Como nos livros de história. Eu fui educada em livros de história em que o Afonso de Albuquerque e o Basta Gama eram heróis extraordinários. Eles eram assassinos absurdos. Porque estavam pelo aumento da nação. Pois, e mataram pessoas. Há que fazer uma revisão da narração. Porque aquela história de quem narra o passado é o dono, ao contrário, os poderosos é a versão dos vencedores. É a versão da história dos vencedores. É curioso porque, num debate onde eu estive a falar sobre o 25 de Abril, basta mudarmos a perspectiva e o sítio onde estamos no mundo para as coisas serem designadas de uma forma diferente. Nós falávamos, nós portugueses, falávamos da guerra colonial. Eles falam da guerra da libertação. É a mesma coisa. Exato. Para tentar fechar com uma nota otimista, eu acho muito interessante a discussão que está a haver. O que eu me custa é que as pessoas estejam a ser manipuladas para se tornarem... para haver uma coisa muito manicaísta. Os de um lado e os de outro. O que me custa é transformar todas as discussões numa coisa primária de uns estão de um lado e os outros estão do outro. Ou estás comigo ou estás... Quando a realidade é cada vez mais complexa e cada vez mais impressionante. Aquilo que eu acho é que estas discussões como estas que estamos a falar têm que ser discutidas num ambiente de grande abertura e de grande tolerância em que as agendas vão mudando. Sim, é verdade que hoje é inaceitável consagrar os descobridores portugueses como eles são consagrados. Porque tem que haver um equilíbrio. Mas ao mesmo tempo se reforça o nome das escolares todas na Praça do Inferno. É totalmente anacrónico isso. Não devia ter sido assim. Mas o que eu acho interessante é que se tem que fazer esta discussão toda mas de uma maneira de calma. Estamos todos nisto. Vamos discutir isto com calma e vamos equilibrar. Eu acho que só sabemos ricos quando tivemos as maiores narrativas e não uma que sempalha as outras. Aquela narrativa fez sentido naquela época. Ah, mas eu por acaso acho que estamos em guerra. Eu acho que estamos em guerra. Repara uma coisa. Para mim um dos problemas, por exemplo, quando falas dessa questão, praticamente é o seguinte que é, vai lá dizer a mim ou a outra pessoa que tem essa visão de que os portugueses eram mundos e que levaram o civilizador a selvagens, vais lá a dedicar-lhe o papel de herói para apontar esse caráter. Ninguém quer. Ninguém quer. Mas é uma questão de espaço e dificilmente vai lá com calma a perceber que o problema é esse. Eu acho que uma das negações justamente de uma outra versão da nossa história tem a ver com isso. Que é nós que ainda por cima somos um pouco à autoestima. Ninguém quer passar por esse papel para agora admitir que afinal tivemos muito mal. Percebes? Portanto, não é bem, vamos lá com calma. É que infelizmente pode implicar a gente passar realmente para o outro lado do... Eu acho, por exemplo, que os Josias vão deixar de ser o livro central da literatura portuguesa. Ou se calhar o velho que te arrestou não é uma pessimista, se calhar. Os Josias são um livro genial, mas de facto vai ser um livro datado. É verdade. É verdade. Da glorificação. Mas de qualquer maneira, repare, lá vamos via inquisição e mesmo assim o Camões consegue fazer uma coisa cheia de amores e cheia de deuses afantes do classicismo. Portanto... É, mas mesmo aí os amores, olhados sobre o ponto de vista contemporâneo, não sei se... Percebes? Não é isso. É que nós todos estamos realmente colonizados por uma determinada forma de olhar para a história. Percebes? E no momento em que o ponto de vista de outras pessoas começar a ser colocado, às vezes não é para ir com calma. É mesmo. É verdade. Vamos abrir agora um bocadinho durante uns minutos para que venhamos daqui a discussão ao público, se houver perguntas. Por favor. Primeira pergunta? Outra pergunta? Passamos logo para a segunda? Não? Para mim é interessante... É melhor você vir aqui para depois ficar. Por exemplo, quando falas sobre a nascida de... como ilustradores, a que ponto tens a liberdade de expressão sem ofender ou... E por exemplo, estava a pensar em os ilustradores de Xavi e Hebdó, quando fizeram as imagens de Mohamed. E tiveram, ainda, muitos protestos e foram assassinados. Mas onde ficaram as protestas? Pelas mortes de esses ilustradores. E quando há uma ausência disso, ainda não estamos mais avançados, acho que penso. Não, nós temos a sorte de trabalhar em democracias onde não é muito comum o que aconteceu com o Xavi e o Hebdó. Eu dizia que fazer um logo de países como o Afeganistão ou como o Ayam, por exemplo, é impossível. Agora, aquilo que aconteceu com o Xavi e o Hebdó foi trágico, foi mesmo horrível. Mas, felizmente, não aconteceu muito mais. Em Portugal, nunca aconteceu uma coisa assim. No Brasil, que é um país de origem ocidental, a Porta dos Fundos teve problemas. Até uma bomba fuderam por causa de uma questão de emergência. Mas, Soprano, quando você diz que esse movimento de cancelação vem de áreas que, normalmente, a esquerda, que a ideologia normalmente não passava, durante estes atos, também, houve pessoas de áreas da esquerda que, normalmente, não estavam que justificaram essas ações. Depois, é o ocidental. Eu acho que é uma questão que me toca. Conheci hoje os desenhadores que morreram no Xavi e no Hebdó. O que eu acho que acontece, que é potencialmente exclusivo, é a nossa contemporaneidade. Eu não vejo maneira de dar volta a isso. Nós vivemos num mundo a várias velocidades. E, quanto mais avançamos, mais essas velocidades estão expostas. Ou seja, há partes do mundo que, do ponto de vista de protocolo social, evoluem muito rapidamente e há outras partes do mundo em que isso não acontece. Em que a velocidade da transformação social é muito mais lenta. Com a tecnologia e a globalização, elas passam a estar ligadas. Aquilo que aconteceu com os cartunes do Malmé, na Dinamarca, ou com os desenhos do Xavi e do Hebdó, tem a ver com isso. Nós temos culturas que estão num outro protocolo social completamente diferente que não entendem como é que é possível que aquelas imagens sejam criadas. Ou seja, não é a comunidade de leitores e o sítio onde aqueles cartunes são produzidos que tem aquela reação. Não são sequer os musulmanes que vivem naqueles países que têm essa reação. São outras culturas a milhares de quilómetros de distância com protocolos sociais de uma outra estagem. E eu acho que não vai haver maneira de dar volta a isso. Ou seja, eu acho que isso é uma das realidades potencialmente exclusivas neste momento de muitos. Como, por exemplo, eu lembrar ainda aqui há três anos ou quatro, vi esta cantora punk de São Paulo atuar aqui no arco do Intendente. E é uma zona que tem imensas pessoas criando da Inglaterra, do Papistão. E eu venho de estar a ver esta mulher vestida com uma roupa meio rasgada a cantar coisas infernalmente feministas em punk e de ver na primeira fila uma mulher que estava ali de véu sozinha a ver aquilo. E eu fiquei pensando duas coisas. A primeira é, o que é que esta mulher vai pensar disto? E a segunda foi, o que é que vai acontecer se esta mulher for para casa falar com os irmãos ou com o marido acerca do que ela ouviu? Não é? Porque são... E eu acho que isto é um problema que não vai ter. Ou seja, eu espero que não haja mais casos como aconteceu desse, mas eu acho que é um bocadinho inevitável, porque estes aparentes estão-nos a conectar a todos e há sítios que não têm realmente esse tipo de protocolos. Não vão entender, sequer, seja possível numa cultura normal fazer-se um determinado discurso ou representação. Já, desculpe, fugindo agora um pouco ao que vamos, como falaste da globalização e destes tempos tão telos que a pessoa vem do analógico já está completamente com os dois pés no digital, mas ainda temos qualqueres resquícios do que é que se passou lá para trás e fica para tão longe. Mas se o século XIX foi o século do romance e o século XX foi o século do cinema, o século XXI será o século do quê? Da inteligência artificial? Da inteligência artificial, com certeza. Sim, da automatização do raciocínio. Sim, eu acho que é... É que é de facto vai pôr as coisas num outro patamar, porque eu acho que a arte é combinatória, isso é verdade. Nós, quando fizemos música, ou teatro, ou quando escrevemos um livro, estamos a escolher uma das combinações possíveis. Agora, a inteligência artificial vai fazer isso. Vamos ficar uma população de ouvintes, leitores, que vão escolher quais as combinações que são colocadas ao nosso efeito. É uma coisa que nem imaginamos. Não tinha, estava a haver um programa que, a partir do que nós pedimos, quer uma história passada em Lisboa, com góbulas e que tenha três personagens principais e que misture José Saramago com o Filipe Simos e com a Zequinha, e a inteligência artificial vai não só dar isso, não é por palavras, é por imagens, com a figura do Fernando Pessoa e com a figura do Saramago, com a figura... Vai misturar tudo e já nos vem... O ator que vai fazer de Fernando Pessoa pode ser o George Clooney. É com a voz dele, não é? É incrível, porque vai ser uma brincadeira. É só ir ao meio do mundo e escolher. Porque pela primeira vez temos um computador que toma decisões e cria. Se ao fim de um ano a inteligência artificial já faz isso, imagina daqui a dez. Obrigada a todos. Obrigada.

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