Home Page
cover of SOBRE PSICANÁLISE “SELVAGEM” (1910)
SOBRE PSICANÁLISE “SELVAGEM” (1910)

SOBRE PSICANÁLISE “SELVAGEM” (1910)

00:00-14:54

Nothing to say, yet

Podcastfreudportuguesepsicanálise

Audio hosting, extended storage and much more

AI Mastering

222

Transcription

This article discusses the dangers of using psychoanalysis without proper training or knowledge. The author recounts a case where a woman sought treatment for anxiety after being told by a doctor that her sexual deprivation was the cause. The author criticizes the doctor's understanding of sexuality and argues that psychoanalysis encompasses a broader definition. They also highlight the importance of addressing both physical and psychological factors in therapy. The author concludes by emphasizing the need to combat internal resistances in order to effectively treat patients. Olá, tudo bem? Vou ler agora o artigo sobre Psicanálise Selvagem, 1910, de Sigmund Freud, publicado pela Companhia das Letras no volume 9 de suas obras completas, tradução de Paulo César de Sousa. E já vou direto para uma nota de rodapé. Selvagem, tradução literal do adjetivo alemão wild, que é grafado como seu equivalente inglês e, como ele, pode ter sentido de desregrado irregular, sentido que não é tão frequente em português, mas que se acha, por exemplo, na expressão capitalismo selvagem. Um artigo interessantíssimo que fala do perigo de se utilizar a psicanálise sem a devida formação, sem o devido conhecimento. Por isso que seria uma psicanálise selvagem, uma psicanálise desregrada e irregular. Vamos ao artigo. Há alguns dias apresentou-se em meu consultório, acompanhada de uma amiga, uma senhora que dizia sofrer de estados de angústia. Tinha seus quarenta e tantos anos, estava bem conservada e claramente ainda não renunciara à sua feminilidade. O ensejo precipitador da angústia foi a separação de seu último marido. Mas essa angústia, conforme seu relato, aumentara consideravelmente após ela consultar um jovem médico da localidade em que vivia, nos arredores de Viena, pois esse lhe explicara que a causa da angústia era sua carência sexual. Ela não podia se privar das relações com o marido, segundo ele. Portanto, havia apenas três caminhos para recuperar a saúde. Ou ela voltava para o marido, ou arranjava um amante, ou satisfazia a si própria. Desde então, ela estava convencida de que era incurável, pois, para o marido, não desejava voltar, e os dois outros meios repugnavam sua moral e sua religiosidade. Procurou-me porque o médico lhe havia dito que se tratava de um novo conhecimento que se devia a mim, e que ela necessitava apenas me visitar para ter a confirmação daquilo. A amiga, uma senhora mais velha, mirrada e de aparência não muito sadia, implorou-me então que assegurasse a paciente que o médico se enganara. Não podia ser verdade, ela própria era viúva desde muito tempo e permanecera respeitável, não sofrendo de angústia. Não me deterei na difícil situação em que essa visita me colocou. Tentarei, isso sim, esclarecer a conduta do médico que a enviou. Primeiramente, quero lembrar uma precaução que talvez, ou oxalá, não seja supérflua. Uma longa experiência me ensinou, como teria ensinado a qualquer outro, a não tomar imediatamente como verdadeiro o que os pacientes, em especiais neuróticos, relatam de seus médicos. Em toda espécie de tratamento, o especialista em doenças nervosas não apenas se torna facilmente o objeto de muitos dos impulsos hostis do paciente, como, às vezes, tem de conformar-se em assumir, por uma espécie de projeção, a responsabilidade pelos ocultos desejos reprimidos dos neuróticos. É algo triste, mas significativo que tais acusações achem crédito, principalmente junto a outros médicos. Portanto, tenho o direito de pensar que aquela senhora me fez um relato tendencioso das afirmações de seu médico, e que faço uma injustiça com ele, que pessoalmente não conheço, ao tomar esse caso como ponto de partida para minhas observações sobre psicanálise selvagem. Assim fazendo, no entanto, eu talvez impeça outros de prejudicarem seus pacientes. Vamos supor, então, que o médico tenha dito exatamente o que a paciente me relatou. Qualquer pessoa lhe adiantará a crítica de que, se um médico acha necessário discutir o tema da sexualidade com uma mulher, tente fazê-lo com tato e descrição. Ora, tal exigência coincide com a observância de determinados preceitos técnicos da psicanálise. E, além do mais, o médico teria ignorado ou entendido mal uma série de teorias científicas da psicanálise, mostrando que pouco avançou na compreensão de sua natureza e seus propósitos. Começamos com os últimos, os erros científicos. Os conselhos do médico mostram claramente em que sentido ele compreende a vida sexual. Naquele popular, no qual se entende, por necessidades sexuais, apenas a necessidade de coito, ou de atos semelhantes que produzam o orgasmo e a liberação de determinadas substâncias. Mas ele não pode ter ignorado que costumam fazer a psicanálise a objeção de que ela estende a noção de sexual muito além de sua amplitude habitual. Isso é um fato. Se ele pode ser usado como uma objeção, é algo que não discutiremos aqui. O conceito de sexual abrange muito mais a psicanálise. Vai além do sentido popular, tanto para cima como para baixo. Tal ampliação se justifica geneticamente. Incluímos na vida sexual todas as manifestações de sentimentos afetuosos que provêm da fonte dos primitivos impulsos sexuais, mesmo quando esses impulsos experimentaram uma inibição de sua original meta-sexual ou trocaram essa por outra, não mais sexual. Por isso, preferimos falar em psicosexualidade, enfatizando que o elemento psíquico da vida sexual não deve ser esquecido nem subestimado. Empregamos o termo sexualidade no mesmo sentido abrangente em que a língua alemã usa a palavra Lieben, amar. Há muitos sabemos que pode haver insatisfação psíquica, com todas as suas consequências, também quando não falta o intercurso sexual normal. E como terapeutas sempre levamos em conta que frequentemente os impulsos sexuais insatisfeitos, cujas satisfações substitutivas combatemos na forma de sistemas nervosos, somente em pequena medida encontram desafogo mediante o coito e outros atos sexuais. Quem não partilha essa concepção da psicosexualidade não tem o direito de invocar as teses da psicanálise que tratam da importância etiológica da sexualidade. Essa pessoa simplifica bastante o problema ao acentuar exclusivamente o fator somático na sexualidade, mas a responsabilidade pelo procedimento deve ser apenas sua. Outra incompreensão, talvez grave, transparece nos conselhos do médico. É certo que a psicanálise afirma que a insatisfação sexual é causa de transtornos nervosos, mas ela não diz mais que isso? Não se pretende deixar de lado, por demasiado complexo, seu ensinamento de que os sintomas nervosos nascem de um conflito entre dois poderes, uma libido, que geralmente se tornou excessiva, e uma rejeição da sexualidade ou repressão rigorosa demais. Quem não esquece esse último fator, que realmente não é secundário, não pode crer que a satisfação sexual constitua em si um remédio de eficácia geral para as queixas dos neuróticos. Afinal, boa parte desses indivíduos é incapaz de satisfação absolutamente ou nas circunstâncias dadas. Se eles fossem capazes disso, se não tivessem suas resistências internas, a força do instinto lhes apontaria o caminho para a satisfação, mesmo quando o médico não o aconselhasse. Para que então um conselho como o que o médico teria dado à senhora? Mesmo que ele se justifique cientificamente, ela não tem como segui-lo. Caso não tivesse resistências internas à masturbação ou à relação amorosa, há muito ela já teria recorrido a um desses meios. Ou o médico acredita que uma mulher de mais de 40 anos não sabe que é possível arranjar um amante ou superestima ele de tal modo sua influência que acha que ela jamais daria um passo desses sem sua aprovação médica? Tudo isso parece bastante claro. Mas devemos admitir que há um fator que muitas vezes dificulta o julgamento. Vários estados nervosos, tanto as assim chamadas neuroses atuais como a neurastenia típica e a pura neurose de angústia, dependem claramente do fator somático da vida sexual, ao passo que não temos ainda ideia segura sobre o papel que neles desempenha o fator psíquico e a repressão. Nesses casos, é natural que o médico considere inicialmente uma terapia atual, uma alteração de atividade somática sexual, e ele o faz com plena justificação se seu diagnóstico foi correto. A senhora que consultou o jovem médico queixava-se principalmente de estados de angústia e provavelmente ele supôs que ela sofria de neurose de angústia, sentindo-se justificado em lhe recomendar uma terapia somática. Novamente, um cômodo mal entendido. Quem sofre de angústia não tem necessariamente uma neurose de angústia. Esse diagnóstico não deve ser tirado do nome. É preciso saber que manifestações constituem uma neurose de angústia e distingui-las de outros estados patológicos em que aparece angústia. Parece-me que a senhora em questão sofria de uma histeria de angústia e todo o valor dessas distinções nosográficas, aqui que também as justifica, está no fato de que indicam outra etiologia e outra terapia. Quem considerasse a possibilidade de uma histeria de angústia não incorreria nessa negligência dos fatores psíquicos que se mostram nas alternativas aconselhadas pelo médico. Curiosamente, nessas alternativas terapêuticas do suposto psicanalista não sobra espaço para psicanálise. A senhora poderia se curar da angústia apenas se voltasse para o marido ou satisfazendo-se via masturbação ou com o amante. Onde ficaria o tratamento analítico em que vemos o principal recurso para os estados de angústia? Com isso, chegamos às falhas técnicas que percebemos na conduta do médico, no caso presente. Uma concepção, a muito superada, baseada na simples aparência, diz que o doente sofre devido a uma espécie de ignorância e que, quando removemos essa ignorância através da informação, sobre os nexos causais entre sua doença e sua vida, sobre suas vivências infantis, etc., ele certamente se cura. O fator patogênico não é a ignorância em si, mas o fato de ela se fundamentar em resistências internas, que inicialmente a provocaram e ainda a sustentam. A tarefa da terapia é combater essas resistências. Informar o que o paciente não sabe porque o reprimiu é apenas um dos preparativos necessários à terapia. Se a informação sobre o inconsciente fosse tão importante para o doente como acreditam os não iniciados na psicanálise, bastaria para seu restabelecimento que ele frequentasse palestras e lesse livros. Mas essas medidas têm tão pouca influência nos sintomas da doença nervosa quanto a distribuição de cardápios para famintos numa época de fome. E a comparação pode ir além, pois informar ao doente acerca do inconsciente resulta, via de regra, em exacerbação do conflito e intensificação das dores. Porém, como a psicanálise não pode prescindir dessa comunicação, determina que ela não suceda antes que se cumpram duas condições. Primeiro, antes que o paciente mesmo se avizine mediante preparação daquilo que foi por ele reprimido. Segundo, antes que tenha se apegado tanto ao médico, transferência, que a ligação emocional a esse torne impossível a fuga. Apenas depois de cumprir dessas duas condições será possível conhecer e dominar as resistências que levaram à repressão e à insciência. Logo, uma intervenção psicanalítica pressupõe um contato prolongado com o doente e tentativas de surpreendê-lo na primeira sessão, comunicando-lhe abruptamente os segredos adivinhados, são tecnicamente condenáveis e acarretam muitas vezes seu próprio castigo ao atrair a autêntica inimizade do paciente e impedir qualquer influência ulterior. Sem considerar que às vezes o médico aconselha erradamente e jamais pode perceber tudo. Na psicanálise, essas prescrições técnicas definidas substituem a exigência do inapreensível tato médico, que é visto com um dom especial. Portanto, para o médico não basta conhecer algumas conclusões da psicanálise. É preciso também familiarizar-se com a técnica se quiser que sua prática médica seja guiada pelas concepções psicanalíticas. Essa técnica ainda não pode ser aprendida em livros e certamente pode ser obtida apenas com grande sacrifício de tempo, esforço e resultados. Como outras técnicas médicas, o indivíduo aprende com aqueles que já dominam. Por isso, não deixa de ser relevante, na avaliação do caso que tomei como ponto de partida para essas observações, que eu não conheço um médico que teria dado esses conselhos nem jamais tenha ouvido seu nome. Não é agradável para mim e meus amigos e colaboradores monopolizar dessa maneira a prerrogativa de exercer uma técnica médica. Mas não tivemos outra escolha em face dos perigos que traz consigo para os doentes e a causa da psicanálise, o previsível exercício de uma psicanálise selvagem. Na Primavera, fundamos uma Sociedade Psicanalítica Internacional em que a lista dos membros se acha à disposição do público para poder rechaçar a responsabilidade pelos atos de todos aqueles que não são dos nossos e chamam de psicanálise seu procedimento médico. Pois, na realidade, tais psicanalistas selvagens prejudicam mais a causa do que os doentes. Frequentemente observei que um procedimento inábil, embora no início tenha provocado uma piora na condição do paciente, acabou por levá-la à recuperação. Nem sempre, mas com frequência. Depois de xingar por algum tempo o médico e sentir-se a alguma distância de sua influência, o doente vê os sintomas cederem e resolve dar um bom passo para o caminho da cura. A melhora final ocorre, então, por si mesma ou é atribuída a algum tratamento anódino de um médico ao qual o paciente se dirigiu depois. No caso da senhora que se queixou do médico, inclino-me a crer que, tudo somado, o psicanalista selvagem fez mais por sua cliente do que alguma prestigiosa autoridade que lhe dissesse que ela sofria de uma neurose vasomotora. Ele a fez voltar a atenção para os verdadeiros motivos do seu problema ou para as proximidades desse. E apesar da revolta da paciente, essa intervenção não terá ficado sem consequências positivas. Mas ele prejudicou a si mesmo e contribuiu para aumentar os preconceitos que, devido a compreensíveis resistências afetivas, os doentes nutrem em relação à atividade do psicanalista. E isso pode ser evitado.

Listen Next

Other Creators